top of page

Os chinelos

  • Writer: Neris Reis
    Neris Reis
  • Jan 2, 2021
  • 3 min read

Os chinelos estavam comigo desde 2008. São até um pouco menores que meu pé, haja vista que em 2008 eu ainda estava em fase de crescimento no auge dos meus 15 anos, que de auge mesmo não teve lá muitas coisas, excetuando o dia que fiquei mais de 20 minutos sem piscar, algo que chocou todo o 1° B, mas talvez isso tenha sido aos 16 no 2° B e isso pouco importa agora. Ganhei-os como lembrança em um evento tradicional de encontro de jovens do colégio em que eu estudava - para surpresa do leitor, o nome do evento era Encontro de Jovens. Os chinelos eram de cor azul e tinham uma qualidade inferior de conforto em relação aos chinelos da mesma marca vendidos no supermercado ou lojas de departamento, talvez, acredito eu, por serem exemplares comprados no atacado para servirem de brindes banais sem muito valor agregado. São daquela marca com o gentílico no feminino e plural de quem nasce naquele estado dos Estados Unidos que é um conjunto de ilhas no pacífico que você já deve estar imaginando qual é. Mesmo sendo brindes usei-os bastante assim que ganhei-os. Depois de um ano ou menos, comprei outro par de chinelos, já que os ganhados estavam "velhos" e foram rebaixados para o status de chinelos- reservas-quebra-galho-para-momentos-de-grande-necessidade. O novo par arrebentou em pouco tempo. Assim como todos os outros que vieram em seguida por vários meses, alguns durando mais, outros menos. Em algum momento, provavelmente quando me mudei de casa, os chinelos azuis acabaram sendo esquecidos no fundo do armário por um bom tempo, o que fez com que eu ficasse descalço quando os chinelos titulares se rompia - e como teimavam em se romper! Um belo dia achei-os novamente em algum momento de faxina ou desespero. Estavam com a borracha mais dura do que nunca, até mesmo do que a borracha da marca concorrente com nome de praia da zona sul do Rio de Janeiro. Considerei jogá-los fora, mas como estava sem chinelos novos, usei-os mesmo parecendo dois tacos de madeira no pé. O tempo e o uso foram amaciando a borracha novamente, mas não o suficiente para que eu abrisse mão de comprar chinelos novos assim que sobrasse algum trocado. Os chinelos azuis do Encontro de Jovens mais uma vez voltavam ao seu ostracismo de chinelos- reservas-quebra-galho-para-momentos-de-grande-necessidade tal qual Ana Furtado nos programas matinais da Globo. Porém, dessa vez não ficariam mais esquecidos no fundo do armário. Sempre que os novos arrebentavam, eu recorria aos velhos chinelos azuis. Depois de tantos anos sem se queixarem de cansaço e em nenhum momento ousarem a recorrer à velha tática de soltar a tira para ganharem aposentadoria compulsória como os seus similares mais novos e de estampas descoladas teimavam em fazer, os chinelos azuis me chamaram a atenção. Será que algum outro par de chinelos durara tanto tempo quanto esse? Como reconhecimento dos serviços prestados até ali, os promovi para chinelos da mochila do futebol para usá-los quando tirasse as chuteiras após as peladas de terça em um momento de prazer barato que só Brás Cubas experimentara com tanto deleite até então, um status que todo chinelo Nutella de hoje em dia quer ter. Veio 2020 e a pandemia. As peladas forçadamente deixaram de existir na minha vida. Contudo, os chinelos azuis não poderiam (e nem queriam!) ficar parados. Durante o início da pandemia usei-os como chinelos-titulares-de-usar-em-casa, o mais nobre posto que qualquer chinelo sério que se preze gostaria de ter. Mas isso era muito pouco para um velho pisante de guerra. Comprei chinelos novos e promovi os chinelos do Encontro de Jovens para chinelos-de-usar-na-rua-durante-a-pandemia, o que o tornou meu companheiro nas idas periódicas ao supermercado em um mundo apocalíptico, descansando depois da batalha no capacho da porta de entrada do apartamento até a próxima missão chegar. Hoje, 2 de janeiro de 2021, depois de 12 anos e alguns meses, os chinelos azuis não resistiram a força irreversível do tempo. A tira do pé direito, o mais usado por um destro como eu, rompeu-se naquele ponto de ligação em que se separa o dedão dos outros dedos. Um fim honrado para um par de chinelos velhos que sucumbiu ao tempo, mas resistiu bravamente até mesmo ao ano de 2020. Foram sepultados menos de 5 minutos depois (com pompas de heróis, diga-se de passagem, no lixo reciclável da cozinha), pois, honrados que foram até o final, não me deixaram na mão no meio da rua, fazendo a gentileza de encerrarem suas atividades ainda no subsolo 2 do prédio.

 
 
 

Recent Posts

See All
Sonhos

O camisa 10 sonhou que fez o gol do título. Na decisão, bateu o último pênalti e perdeu a chance de ser campeão. A mulher sonhou com...

 
 
 
Acesso ao Olho

Recesso ao mundo Possesso ao outro Protesto ao tudo Processo ao todo Progresso ao lado Regresso ao vagabundo Calabouço sem fundo Receoso...

 
 
 

1 Comment


bbpribeiro
bbpribeiro
Jan 06, 2021

Jamais imaginei que fosse gostar tanto de uma homenagem a um par de chinelos! Você poderia ter doado o corpo deles pra ciência, mereciam ser estudados, porque nunca ouvi falar de chinelos tão duradouros. Obs: dei um berrinho no shade na Ana Furtado 🗣🗣

Like

Formulário de inscrição

Obrigado(a)

  • Instagram
  • Twitter

©2020 by Neris Reis. Proudly created with Wix.com

bottom of page