Assintomática
- Neris Reis
- Jul 8, 2020
- 19 min read
- Já tá querendo sair, né seu José?!
- É que eu... Eu só... Eu só tô indo comprar pão, minha filha.
- Eu já comprei conforme a gente já combinou tem um mês, lembra? Agora só eu que posso sair pra comprar pão.
- É que você sempre se esquece da mortadela...
- Vô, eu comprei tudo e tá lá na cozinha. Nem tente me enrolar.
- E eu tô indo de máscara...
- Nem pensar! É pra ficar em casa! O senhor sabe. Tá difícil pra mim também, mas agora é melhor pro senhor ficar aqui. Se precisar de alguma coisa, eu resolvo, tá bom?
- Mas gente, tá todo mundo na rua, o presidente falou que isso não é nada demais!
- Então tá bom, vai lá! Depois não reclama se o caminhão cata-velho passar. Ou pior: se cortarem sua aposentadoria!
- Tá bom! Tá bom! Menina cheirando a mijo querendo dar ordem, onde já se viu...
Já era a segunda vez só nesta semana que seu José, avô de Laura, tentava escapulir na quarentena. Cada vez era uma desculpa diferente e Laura já estava veiáca nas táticas do avô. Nesta manhã, por exemplo, ficou sentada na velha cadeira de balanço da sua avó perto da entrada do quintal, lendo seu quinto livro da quarentena, para que pudesse ficar de olho no portão. Passara acordar mais cedo para ir à padaria quando faltava algo pro café da manhã. Também se tornara responsável, por vontade própria, de todas as contas de casa para que nenhuma ida à casa lotérica fosse desculpa. Porém, nem ela própria, naquela altura, se sentia legítima para censurar a vontade irracional do seu avô de romper a clausura e sentir o calor da rua. Ela também queria o calor. Da rua e de Bruno.
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Laura morava com os avós e gostava disso. Porém, durante a pandemia, passou a observar o quanto a velhice, por vezes, era um fardo. Não poder aproveitar a liberdade da vida nesta idade era um peso grande demais para quem já não tinha mais tanta liberdade nos movimentos do próprio corpo. Nestas horas até batia uma culpa por julgar tanto a vontade insaciável dos velhos quererem sair de casa a qualquer custo. Ela mesma começava a repensar o sentido de tudo aquilo, não aguentava mais aquela situação de confinamento. Mas colocar os avós em risco estava fora de cogitação.
No início, achara que toda a situação era uma oportunidade dada de bandeja para a humanidade evoluir e, de quebra, para ela colocar suas leituras e projetos em dia. Deixar de sair não seria problema à primeira vista. Não que ela não gostasse de sair, pelo contrário: gostava muito de viver lá fora. Mas se tinha uma coisa que era do seu agrado tanto quanto sair, era ficar em casa – inclusive, fazia algum tempo que não experimentava a segunda situação, então, no fim da equação, seria uma boa. O principal problema em questão era que, até então, Laura era a responsável pelas escolhas das fases da sua vida, seja a fase de sair, seja a de ficar.
O tempo foi passando e o mundo não dava sinais de melhoras. As pessoas, por sinal, se mostravam egoístas a ponto de ignorar todas as recomendações e furavam a quarentena para reuniões sociais regadas a álcool e lives sertanejas. Laura condenava piamente todas estas pessoas egoístas mas, no fundo, quando batia a solidão, pensava se a errada não seria ela por fazer julgamentos, afinal, somos todos humanos.
No alto do tédio da quarentena e de sua solteirice sem liberdade, Laura precisava de movimento, ver gente nova. Ser solteira, aliás, nunca fora problema em sua vida. Gostava de encarar como uma dádiva, um ideal a ser seguido, um rompimento com normas, já que, apesar de sensível e companheira, era acima de tudo muito desapegada. O problema era ser solteira dentro de um regime de confinamento. Sentia falta da cidade pulsante, dos cafés, dos happy hours em plena terça-feira e dos barzinhos de sábado logo após uma sessão de cinema. Queria os amigos por perto, para rir dos assuntos mais banais na mesma intensidade em que se debatia os assuntos mais acalorados como temas políticos e sociais. Queria, nos intervalos dos assuntos, esnobar os carinhas do bar, sobretudo os esquerdomachos – adorava quando algum deles puxava assunto dizendo “você é feminista, né? Eu também sou”. Muitas vezes até montava a arapuca para estas situações, se aproximando com um pedido de isqueiro para depois pisar e ir embora, deixando sua lição e sua marca. Mas também queria se permitir a se abrir, nem que fosse por uma noite, para aqueles caras caladões misteriosos que tinham olhar perdido e distante no meio de tantos homens com olhares de caça.
Laura, entretanto, não precisava ir aos bares para atrair os olhares caçadores, não precisava sequer sair de casa, e entendia que fazia por onde para atraí-los. Seus gostos musicais, suas roupas descoladas e suas fotos no Instagram não ajudavam neste quesito – e ajudavam bastante nos momentos de autoafirmação. Ao mesmo tempo que esnobava os hipsters que tentavam aproximação aos montes, seja na vida real em tempos normais, seja por mensagens diretas no Insta durante todo o tempo, com acentuada frequência na pandemia (ela adorava vestir a carapuça de uma pessoa fechada e fazia bem para seu ego pisar no ego destes caras que tentavam romper a barreira que ela criava), Laura amava os cantores mais hipsters possíveis, com seus visuais milimetricamente largados, suas roupas casuais intencionalmente escolhidas para a vibe anos 90, suas barbas e cabelos convenientemente desleixados, seus óculos marcantes e, nos tempos de pandemia, suas lives voz e violão. As lives, por sinal, começavam afetar sua carência de mundo em todos os sentidos, já que música era a expressão artística que mais ligava Laura ao seu mundo particular.
Certo dia, ela vira no Twitter um link sobre um aplicativo de relacionamentos que aumentava seu alcance de atuação para um raio global de encontros virtuais, antes limitados a raios que abrangiam basicamente as redondezas da cidade, o que possibilitaria matches em distâncias intercontinentais. Logo de cara ela pensou: “agora pronto, já não bastava ter em mãos um cardápio de gente carente local?”.
Pouco depois, uma amiga de Laura comentara que conheceu um belga nesta brincadeira. Dissera que havia instalado o aplicativo para praticar o seu francês (Laura pensou “aham, praticar francês”), mas em menos de uma semana já estavam combinando de se encontrarem em Recife para um match na vida real quando todo este escarcéu passasse.
Se todo mundo dava um jeito, por que não Laura? Ela já não estava fazendo nada, nesta altura já havia lido três livros e perdido a conta de filmes assistidos. Estava na hora de achar uma outra distração para ocupar seu tempo.
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Fora um salto na sua autoestima.
Em poucos matches, Laura conhecera italianos, russos, suíços, espanhóis, australianos, americanos, mexicanos, colombianos, portugueses e várias outras nacionalidades que logo foram se perdendo no meio da lista. Um mais diferente que o outro. O outro mais pervertido que o um. Os europeus tinham um charme especial e, também em especial, apreciavam estarem falando com uma morena made in Brazil – não que os latinos não tivessem seu charme, porém, logo de cara, Laura percebera que latinos não eram muito de ficar em rodeios nas temáticas das conversas e demoravam menos da metade do tempo dos europeus para irem direto ao assunto que os importavam. Apreciar, aliás, era pouco para os gringos: estavam deslumbrados, era como se tivessem acabado de ganhar na loteria ou descobrir a América. Não demorara para os encontros virtuais com hora marcada surgissem, regadas a vinho – muito vinho.
À medida que o teor alcoólico subia, o nível dos assuntos, que giravam em torno de pronuncias de palavras, curiosidades das cidades e países e até mesmo banalidades da vida pessoal, descia para insinuações sexuais, primeiro sutis, disfarçadas, com brincadeiras de duplo sentido, para depois serem bem descaradas. Laura, que nunca havia trocado nudes explícitos antes (no máximo fotos “sugestivas” como gostava de falar) se tornara uma verdadeira perita em sedução virtual. Mandar nude virara arte em suas mãos.
Logo as fotos ganharam iluminações especiais e poses ousadas – Laura gostava de fotografia. E logo as fotos evoluíram para vídeos dançantes – Laura também gostava de dançar. E tão logo que toda a atmosfera ficava mais excitante, rapidamente se desmanchava pela monotemática que se transformava a conversa. A masturbação virtual, mesmo multicultural, já não a excitava tanto assim. Laura precisava de mais. Mesmo com sua autoestima revigorada e considerando sincero o brilho no olhar dos seus contatinhos internacionais ao ver suas curvas, o seu desejo pedia o encanto da descoberta de quando ainda era livre para escolher com quem passaria a noite entre os jovens embriagados da calçada do bar.
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O cardápio humano internacional perdera a graça. Mas o estrago já estava feito. Aquela experiência atiçara um monstro adormecido dentro dela. Laura se sentia parcialmente viva de novo em um mundo que se mostrava cada vez mais doente. Ela queria se sentir viva por inteiro. Queria papos sinceros, trocas verdadeiras que não fossem só fotos safadas. Laura queria conversar em português sem ter que apelar para o Google Tradutor a cada três frases. Não só isso. Laura queria ser entendida sem precisar explicar seu mundo e se fazer entender não é uma missão apenas da língua portuguesa. Era mais específico que isso. Laura adorava tomar vinho, se sentia chique, se sentia em um filme noir, mas segurar essa pose tanto tempo não parecia ser totalmente da sua natureza depois que se tornara rotina, ainda mais em tamanha distância. Laura sentia falta da essência do papo sobre as escolas onde haviam estudado, sobre descobrir os conhecidos em comum, sobre os romances com conhecidos em comum, sobre os bares em comum. Laura sentia falta de dividir o litrão de cerveja com batata frita sabendo que isso era o signo, o ascendente e a lua de uma troca verdadeira.
Depois de tantas lives de ídolos impossíveis e de se sentir viva apenas pela metade com gringos pervertidos em um mundo lacrado para a vida de outrora, chegara no momento ideal de ter a chance de, pelo menos em uma breve epifania, ter a ilusão de se sentir inteira. Chegara a hora de morrer de amores verdadeiros, amores de pandemia.
E sem entender se sabia ou não o porquê de estar fazendo isso, mudara o raio do aplicativo para 10km, depois para 5km e, por fim, 2km.
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Não demora muito para conhecer Bruno, 25. Bruno era designer (ou programador, ou publicitário ou qualquer coisa parecida com isso, seu perfil dizia apenas “freelancer” e para Laura era tudo igual). Bruno tinha barba falha, mas consistente (Laura não gostava de perfeições). Bruno tinha olhos castanhos (Laura estava cansada de olhos claros depois de sua temporada europeia). Bruno tocava violão (geralmente Laura não caia nessa, mas naquele momento era tudo o que seu ego queria – Laura gostava de se sentir sob controle dos seus quereres). Era tudo o que dava para ver pelo aplicativo, mas já estava de bom tamanho para um começo.
Assim como todo encontro casual espontâneo deve ser, os papos entre os dois fluíam com a mesma naturalidade e rapidez com que os dedos dos jovens deslizam sobre a tela de um smartphone. Em dois dias parecia que se conheciam há dois anos. Não era paixão, não havia juras de amor na conversa, nem promessas de encontros quando o mundo voltasse ao normal. Era natural e isso confortava Laura ao mesmo tempo que a estranhava.
No terceiro dia de conversa, uma notificação aparecera na tela do celular.
“Posso te mostrar uma coisa?”
Era a mensagem de Bruno para a alívio de Laura. Estava demorando o lado pervertido desse hipster aparecer – homens hipsters, antes de tudo, são homens.
“Me surpreenda”, Laura resolveu arriscar.
O vídeo demorara poucos segundos para baixar. Bruno tocava uma guitarra com uma destreza nunca antes vista por Laura, pelo menos não performada por um amador. Sua voz saia doce e afinada, levemente falhada, o que aumentava o mistério sobre a persona de Bruno. Ao fundo, um pôster do Robert De Niro em algum filme do Scorsese compunha o cenário.
“If you really love nothing On what future do we build illusions If you really love nothing Do we wait in silent glory...”
As palavras misturadas às notas e aos acordes foram como um punhal diretamente no peito de Laura. Não era paixão. Era pior: era o lado mais vulnerável de Laura se apresentado.
“Uau, me surpreendeu, pensei que fosse nudes hahaha”.
“Mandar nudes é coisa do passado. A moda agora é tocar pelado”.
“Você não tá pelado”.
“E nem precisava”.
“Perto de qual mercado você falou que morava mesmo?”.
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- Já tá querendo sair, né seu José?!
- É que eu... Eu só... Eu só tô indo comprar pão, minha filha.
- Eu já comprei conforme a gente já combinou tem um mês, lembra? Agora só eu que posso sair pra comprar pão.
- É que você sempre se esquece da mortadela...
- Vô, eu comprei tudo e tá lá na cozinha. Nem tente me enrolar.
- E eu tô indo de máscara...
- Nem pensar! É pra ficar em casa! O senhor sabe. Tá difícil pra mim também, mas agora é melhor pro senhor ficar aqui. Se precisar de alguma coisa, eu resolvo, tá bom?
- Mas gente, tá todo mundo na rua, o presidente falou que isso não é nada demais!
- Então tá bom, vai lá! Depois não reclama se o caminhão cata-velho passar. Ou pior: se cortarem sua aposentadoria!
- Tá bom! Tá bom! Menina cheirando a mijo querendo dar ordem, onde já se viu...
Já fazia duas semanas que Laura e Bruno conversavam. Os papos continuavam fluindo naturalmente bem, mas não tão intensos como foi no momento em que Bruno mandou o vídeo tocando guitarra. Ele também não era pervertido e nem de fazer planos para depois da pandemia como os outros carinhas que ela conhecera virtualmente. Todas as conversas com os esses novos conhecidos, aliás, rendiam boas piadas entre Laura e seus amigos.
O contexto em que estava vivendo ocupara bem a cabeça e o tempo de Laura. A rotina de controlar seus avós para que eles ficassem seguros, colocar suas leituras em dia, conhecer pessoas novas e comentar sobre esses papos aleatórios com seus amigos, recheados de carinhas tentando se mostrar de todas as formas com seus planos de encontro que de forma alguma aconteceriam, deixava seus dias mais leves e ligeiros.
Porém, Bruno estava sempre ali.
Àquela altura, Laura já sabia que Bruno morava só e era programador, não designer. Não morava muito longe da casa dos seus avós, ambos frequentavam quase que os mesmos serviços essenciais disponíveis na redondeza. Não sabia explicar o porquê, mas se sentia preocupada com ele, achava que a solidão em tempos de pandemia devia estar o afetando para tirar seu entusiasmo nas conversas (Laura não queria de forma alguma colocar como hipótese uma baixa no interesse dele por ela, era orgulhosa demais para isso). Mesmo com menos entusiasmo, se falavam diariamente.
Na noite anterior, Bruno surpreendeu Laura novamente. Comentou que pretendia ir ao supermercado comprar alguns mantimentos para os próximos dias e sugeriu que poderiam se encontrar casualmente, mesmo que de longe, respeitando todas as orientações da OMS. Ninguém nem perceberia que se tratava de um encontro marcado na internet. Essa ideia empolgou Laura que, para não parecer tão entusiasmada, respondeu com um “pode ser”.
Até a manhã seguinte, porém, Bruno não havia falado mais nada, o que deixou Laura pensativa se não devia ter mostrado mais emoção na resposta seca que deu. No meio dos devaneios sobre a melhor forma de responder uma mensagem, quase não percebeu que seu avô já havia virado a chave do cadeado e estava para virar o trinco do portão.
Por sorte, o barulho foi forte o suficiente para acordá-la de suas divagações a tempo de impedir que seu avô saísse, o que a deixou com um sentimento de culpa ainda maior quando subiu a notificação de Bruno na tela do telefone.
“Então, estou pensando em ir lá pelas 17h. Te encontro lá? Vou estar de camiseta preta”.
“Com certeza!”.
No mesmo instante em que enviou a mensagem, se arrependeu de ser tão entusiasmada. De qualquer forma, pensou que era hora de baixar a guarda, por mais que algo dentro dela a deixasse inquieta.
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Laura chegou alguns minutos atrasada em relação ao planejado. Ela cogitou se atrasar um pouco propositalmente para parecer mais casual, mas não precisou tomar essa decisão por conta própria. Estranhamente, vinte minutos antes da hora do encontro, seu telefone tocou. Antes de pegar o celular, pensou que era Bruno inventando alguma desculpa para desmarcarem. Não era Bruno, era seu pai.
Fazia tempo que não se falavam. Na verdade, nunca foram muito de se falar. Geralmente a ausência dele era tão mais íntima de Laura do que ele próprio sequer cogitara ser. Era Laura que tinha a missão de manter contato e que ligava para ele, mesmo assim, limitando-se às datas especiais ou assuntos de extrema importância. Aquela não era nenhuma data especial – pelo menos não que Laura soubesse. Isso fez seu coração parar por uma fração de segundos e gerou uma pequena moleza em suas pernas pela primeira vez naquele dia.
A última ocasião que se falaram fora ao início da pandemia. Seu pai não era exatamente do grupo de risco: tinha menos de 60, não era de beber, não fumava, não era diabético e, desde que Laura se entendia por gente, seu pai fazia questão de salientar a importância de correr logo pela manhã. Porém, desde que se divorciara, optara por uma vida reclusa, distante, quase um ermitão. Laura, que cansara de insistir para o pai sair mais e viver a vida, mudou o discurso para que ele ficasse em casa e que, se eventualmente precisasse de alguma coisa, poderia entrar em contato que ela daria um jeito. Laura era filha única.
- Pai, tá tudo bem? Tá precisando de alguma coisa?
- Não, minha filha. Liguei mais para saber como você tá. Seu José e dona Margarete estão bem?
- Sim, pai, estamos todos bem.
- ...
- Tem certeza que está tudo bem?
- Está sim, minha filha. Era só pra dizer que... Saiba sempre que o pai te ama...
- Eu sei pai, também te amo, mas agora não é uma boa hora, estou ocupada. Outra hora te ligo.
- Tá bom...
A conversa desestabilizou Laura. Ela gostava de manter uma pose durona e pouco sentimental. Mas seu pai ligar repentinamente – mais do que isso, falar que a amava –era golpe baixo. Sequer se lembrava qual foi a última vez que seu pai havia falado isso (ou mesmo se já havia falado). O indício que seu pai lhe dera de presente era impossível ser captado por Laura que, tão rapidamente quanto se desestabilizou, restabeleceu a ordem e o controle sobre si e tentou se concentrar no que viera fazer no mercado. Nem se deu conta que se esquecera de se despedir antes de desligar a ligação.
Quando viu a hora, pensou que era tarde demais. Andou pelo mercado como se nada tivesse acontecendo. Sua respiração estava ofegante, mas não se incomodou, atribuía isso a falta de costume de usar máscara. Nem sinal de Bruno e sua camiseta preta. Pensou que seria mais fácil se ele tivesse falado qual era a cor da máscara que usaria, já que, nessa altura da pandemia, as máscaras estavam cada vez mais estilizadas em rostos que só tinham agora os olhos aparentes e que, quando se cruzavam com outros olhos, era como se dissessem “eu entendo”. Na ânsia de sair de casa para o encontro marcado, Laura se esqueceu de ao menos fazer uma lista de compras para assim não dar viagem perdida. Seria muito constrangedor em meio a uma pandemia sair do mercado de mãos abanando. Começou a se sentir ridícula fingindo escolher um detergente.
Só não estava mais ridícula do que a figura curiosa com quem se deparou na seção de congelados. Em meio a tantas pessoas que usavam máscaras coloridas, como uma senhorinha que vestia até luvas cirúrgicas, e outras que usavam suas máscaras de qualquer jeito, como um homem de meia idade e camisa do Corinthians que deixava o seu nariz totalmente para fora da máscara, um homem velho, gordo e tão careca que a cabeça parecia uma bola de bilhar revestida por couro, chamava a atenção com sua máscara xadrez azul claro que mal cabia em seu rosto carnudo, o que deixava a impressão de a máscara ser na verdade uma calcinha bem pequena em uma bunda muito grande. Quando o homem velho percebeu que ela o encarava, Laura virou o rosto imediatamente, fazendo com que sua tentativa de disfarçar mais a denunciasse do que a encobrisse. O homem velho se limitou a também virar o rosto sem paciência e sair de perto.
Laura se dirigiu para a seção de frios e, por fim, para a seção de bebidas. Seu coração parou por uma fração de segundos e bambeou suas pernas pela segunda vez naquele dia quando encontrou um olhar perdido, um tanto misterioso, um pouco melancólico, flertando com o niilismo. Aquele mesmo tipo de olhar (ou pelo menos muito parecido) que se destacava no meio da multidão de olhares caçadores nos bares da cidade aos finais de semana.
- Camiseta preta... Da próxima vez poderia falar a cor da sua máscara para ficar mais fácil.
- Eu até pensei nisso depois, mas só tenho máscara branca. E se você reparar, muita gente ainda usa máscara branca.
- Mas não com uma nota musical desenhada no canto.
- É, nisso você tem razão... Bom, então... Prazer, Bruno – ele estendeu seu pé.
- O prazer é meu – Laura entendeu o aceno e deu um chutinho de cumprimento no pé de Bruno (ela reparou que ambos usam All Star, o que era encantador para a Laura, já que todo mundo parece ter aderido à moda dos Vans – foi também um alívio, porque morria de medo de Bruno usar sapatênis).
Andaram juntos pelo mercado mantendo a distância de aproximadamente um metro um do outro para não se colocarem em risco. Bruno falou que precisava comprar verduras, ovos, produtos de limpeza e umas cervejas. Depois do constrangimento mútuo, tornaram-se cumplices da situação inusitada e rapidamente o gelo entre os dois foi quebrado. A atmosfera ficou leve e lembrava bastante o mesmo clima dos papos que se desenrolavam virtualmente entre os dois. Em um tempo que poderia ser dez minutos ou uma hora, chegaram à fila do caixa.
Por dentro, Laura queria mais do que o encontro no mercado. Ver aquele olhar era como se reencontrar em sua melhor versão. Até ali, ela cumpria rigorosamente tudo o que se podia fazer para se proteger na pandemia, talvez até mais (desde que tinha chegado ao mercado, passou generosas quantidade de álcool gel nas mãos pelo menos três vezes, fora as outras duas no caminho). E Laura sabia que Bruno era solitário, não tinha contatos casuais com ninguém, era um cara reservado por essência e, convenhamos, Laura pensava, ambos tinham assuntos para tratar sem máscara e sem os outros panos do corpo. Ela tinha o direito de escolher isso e Bruno, aparentemente, devia entender:
- Eu tava pensando...
- O quê?
- Não, deixa pra lá... – Bruno hesitou.
- Pode falar – Laura o encorajou.
- Eu tava pensando que a gente fez tudo certinho até aqui. Você não sai, eu não saio, nesse tempo todo ninguém teve sequer um sintoma... Tipo, já teria dado tempo da doença se manifestar caso a gente tivesse, não?
- Pra ser sincera, eu também tava pensando a mesma coisa.
- Então, como a gente faz tudo certo, por que, de repente, a gente não vai lá em casa, toma uma e conversa mais relaxado? Se você achar que não, tá tudo certo...
- Eu fico meio que me sentindo errada, sei lá, mas, a gente não taria fazendo nada de errado, se a gente parar pra ver e analisar nosso caso em particular, então, por que não?
- Você topa?
- Topo, só não posso demorar muito para não preocupar meus avós.
Saíram do mercado na mesma hora em que o sol que deixava o céu para se encontrar com o horizonte. O ar era fresco e ameno. Era como se ambos tivessem tirado um grande peso das costas. Estavam mais a vontade do que nunca e a conversa fluía normalmente, como não podia deixar de ser. Bruno guiava a direção. Conversaram sobre o clima, o tempo frio que estava chegando, o quanto pôr do sol ficava bonito nesta época do ano. Conversavam também sobre a decepção das pessoas com o adiamento de eventos como festa junina e Lollapalooza e, finalmente, shows que tinham ido e que gostariam de ir quando a pandemia terminasse. Era a primeira vez que tocavam no assunto pós-pandemia, o que era muito comum nas conversas que Laura teve com outros caras que conheceu nesse período. Sentiu que o tópico deixou Bruno angustiado e resolveu trocar de assunto. Perguntou o que ele pretendia cozinhar hoje à noite.
Até certo ponto, o caminho era exatamente o mesmo que Laura fazia para voltar para a casa dos avós. Mas depois de três quadras, viraram para o lado oposto e seguiram para uma rua só de prédios. As calçadas e ruas tinham pouco movimento de pessoas e de carros, o que agradou Laura, já que das últimas vezes que foi no mercado ou na padaria sentiu que as pessoas começavam a ficar desleixadas com a pandemia. Bruno diminuiu o ritmo dos passos.
- Chegamos e não chegamos.
- Como assim?
- Bom, este é meu prédio, mas a portaria tá em reforma, como você pode ver. Por causa da pandemia, tiveram que deixar assim e não tem como entrar. Só entra pela garagem, que fica do outro lado da quadra.
- Se você não falasse eu nem perceberia, não faria diferença essa informação, podíamos seguir direto para a garagem.
- É verdade, drrrr... – Bruno riu tímido.
Seguiram até o fim da rua e dobraram a esquina. Um vento gelado cortou o ar no mesmo instante em que o sol finalmente deixou o horizonte. A atmosfera mudou. O peso da culpa foi de encontro ao rosto de Laura, trazendo palidez que ela podia sentir em sua face. Refletiu sobre o peso moral do que estava fazendo. Lembrou-se sobre todas as vezes que censurou conhecidos por reuniões casuais entre amigos, do tanto que considerava isso errado e que, por mais que tivesse ciência de que provavelmente os dois não estavam infectados, pelo sim, pelo não, era melhor não se arriscarem. Pensou nos avós idosos e o tanto que estava sendo egoísta, não só de colocar em risco a saúde dos dois, mas também por ter sido uma verdadeira bedel na hora de fiscalizar o comportamento de quem tinha muito mais experiência do que ela poderia imaginar quando o assunto é viver. Começou a se sentir paranoica e exagerada por juntar a este bolo uma lembrança que já era um pouco distante, de quando era caloura na faculdade (e de quase tudo na vida) e ainda iniciava suas aventuras sexuais, na ocasião em que deu de primeira e sem camisinha para um roqueiro charmoso e limpinho de uma famosa banda da cidade, contraindo herpes genital. No fim das equações que fazia freneticamente em sua cabeça, Laura se sentia equiparada a uma negacionista e, para ela, isso era horrível, condenável e tinha um peso que não queria pagar.
- Bruno... – Laura parou e começou a dar meia volta.
- Tá tudo bem? – Bruno se mostrou apreensivo.
- Eu pensei aqui e acho que é melhor deixar isso pra depois – Laura respondeu.
- Eu imaginei que isso pudesse acontecer.
Laura tomou um susto. Não era Bruno que falava. Ao se virar de súbito para a direção de onde vinha a voz, deu de cara a uma grande massa de carne humana. Com a força do impacto, cambaleou uns passos para trás e pôde ver em quem havia esbarrado. Tomou um susto ao reconhecer o homem. Sua máscara xadrez azul claro agora pendia em uma das orelhas de sua enorme cabeça gorda e careca. Sua boca sorria, meus seu olhar era de cólera. Antes que Laura pudesse tentar correr, o velho homem gordo e careca segurou seu braço com força.
- SOCOR...
O grito de Laura foi abafado pelo pano cheio de éter colocado na região de seu nariz e boca. O olhar de Laura era puro desespero.
- Calma, garota. Ninguém aqui é monstro, ninguém vai burlar você.
Sem mais forças para lutar contra o peso do homem gordo e contra o efeito do éter que subia à sua cabeça, o coração de Laura falhou, deixando suas pernas moles pela terceira e última vez naquele dia.
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Laura era só mais uma infeliz vítima de uma antiga pandemia que corrói a humanidade: a existencial. Sucumbiu sob o vírus da efemeridade, da busca tola por ser dona do próprio destino, da própria sorte e até das próprias emoções que ingenuamente pensava dominar, sem saber quais eram de fato tais emoções e seus porquês – porém, precisava desbravá-las loucamente. Sua vontade de existir quando aparecia era difícil de controlar. Apesar de tudo, viveu até ali em uma glória interna, silenciosa e assintomática.
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Bruno assistiu tudo com o olhar melancólico sem nada fazer. O vazio de brilho em seus olhos era só mais um sintoma de quem estava muito longe de si fazia tempos. Estava assustado, porém, não desesperado. Por que ela simplesmente não recusou o convite?
- Não vai me ajudar a carregar pro carro? Pera aí, não vai me dizer que você se afeiçoou nela?!
- Não, doutor...
- Bom, tanto faz. A sua parte já tá na conta. Desde que a pandemia começou, não tão aceitando como doação os órgãos de quem morre infectado. Fazer o que? Alguém precisava lucrar... Argh... Me disseram que os rins e o coração dessa aqui já têm donos. Você disse que ela não é fumante, né?
- Só ocasional...
- Talvez aproveitem mais alguma coisa.
Bruno não precisaria mais fazer freelas por um bom tempo.
Tô surpresa, Anderson! Quero mais!
Uau. Bem inesperado! Ótimo.
A maldade humana é real... Brabo!
Rapaz, que texto! Me prendeu do início ao fim :O Parabéns
Marrapaiz!!! Taí, gostei!!! Contudo nunca mais recomendarei o Tinder pras amigas solteiras nessa quarentena, confesso que fiquei um pouco impressionada