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Carnaval

  • Writer: Neris Reis
    Neris Reis
  • Feb 23, 2023
  • 9 min read

Era seu primeiro carnaval.


Não que fosse seu primeiro ano de vida. Muito pelo contrário. Já tinha mais de 30 carnavais desperdiçados - isso para não dizer quase 40 carnavais desperdiçados.

Vindo de uma tradicional família brasileira, sempre foi muito careta, CDF, do interior do interior, como se essa história de carnaval não fizesse parte da sua cultura.

Quando criança, o ponto de encontro de sua cidade no interior do interior no feriadão mais esperado por tantos brasileiros para o ano finalmente começar era a praça do coreto com os bêbados já conhecidos da região, entre eles Lobisomem e Chico Cachorro.

Costumava passar em frente ao coreto depois da missa para ver os carros com som ligado, mas não era um ambiente que sua família estacionava a atenção. Iam direto para o almoço do feriado na casa de uma das avós.


Certa vez, quando já era adolescente e estava acostumado com a ideia do feriadão de carnaval ser só um maravilhoso motivo para não ir para a escola e colocar os estudos do começo do ano em dia para não acumular, foi convidado para um acampamento com os coleguinhas do colégio – que já não eram tão coleguinhas assim. Até ele, o aluno número 1 da escola, quiçá da cidade, se animou de ir. Mas a vida não é um morango. Ele pegou catapora nas vésperas do acampamento. Quem pega catapora aos 15 anos para perder tamanha oportunidade de reunião de hormônios?


Carnavalescamente, só e somente só ele.


Na quarta-feira de cinzas, depois de saber das histórias do acampamento, entre as quais envolviam álcool, cigarro, beijo na boca e, quem diria, fornicação que, claro, envolvia a menina que ele gostava desde a terceira série. Desta quarta-feira de cinzas em diante, repudiou para sempre a ideia de beber, fumar e festas, principalmente beber e fumar em festas de carnaval. Se era coisa de caras que fornicaram com ela, ela que não era merecedor dele e ele não iria ser um desses caras.


--


A vida continuou monotonamente em sua trajetória normal. Fez faculdade na capital e seguiu à risca a vida universitária sem festas & bebidas & cigarros. Em contrapartida, se formou como primeiro de sua turma de Ciências Contábeis.


Logo emendou uma carreira até que boazinha em um médio escritório de contabilidade. O que em tradução literal significava perder feriados e dias santos no escritório para ser o funcionário modelo. E claro, esses feriados e dias santos não incluíam somente Natal e Páscoa. O Carnaval religiosamente seguia negligenciado com louvor.


Mas tudo bem, ele não gostava de carnaval.


E não quer dizer que sua vida era sem graça não. Depois de um tempo, quando se sentiu seguro o suficiente, vez ou outra até tomava uma taça de vinho.


Mas o ano de 2020 chegou e, logo após o carnaval, veio a pandemia. Com ela, veio também uma coisa que nunca tinha feito na sua vida adulta: ele agora passava mais tempo em casa do que no trabalho, incluindo os feriados. Mesmo que trabalhando, era sua casa.


Logo aprendeu a negligenciar o trabalho, pois não havia ninguém o vigiando e é isso que se faz quando ninguém está de olho. Buscou novos hobbies que há muito queria ter. Tentou violão, mas não rolou muito. Experimentou séries, mas logo viu que não era muito de séries. Arriscou receitas, mas sua comida era péssima. Por fim, encarou a literatura, o que surpreendentemente, até para ele mesmo, deu certo. Leu “A Revolução dos Bichos” e “Sapiens”. Foi o suficiente para se sentir um ser humano empoderado de revolta e razão.


Passou a não trabalhar direito mais e mais. A pandemia uma hora virou nota de rodapé do jornal e ele teve que voltar para o escritório. Agora com a barba por fazer – o que o deixava mais atraente, mas não menos desleixado – voltou à rotina de proletariado. Já não era pontual como antes e muito menos ficava até mais tarde.


Ele, logo ele, passou tomar chopinho às quartas. Logo ele, que não gostava do gosto de cerveja (antes de tentar o vinho, tentara cerveja). Mesmo assim, era sempre um ou dois chopinhos e nada mais, não queria perder a linha e ainda tinha um certo receio com álcool.

Arrumou uma namorada no aplicativo, algo que nunca tinha feito antes desde Antônia, sua única namorada até então da longínqua época da faculdade, namoro esse que durou eternos dois meses. Até pôde, depois de anos, visitar os pais no interior no feriado de Páscoa e aproveitou para apresentar a linda e nova namorada para toda família pela primeira vez.


Agora, aos 30 e tantos era um homem e tanto! Ele, logo ele!


--


Até que um belo dia sua nova namorada lhe deu um pé na bunda de presente de namoro.


Para piorar, a empresa precisou fazer cortes. O novo gerente, o medíocre Cortez, que havia entrado na empresa junto com ele como estagiário, resolveu o tirar de lá, afinal, já havia um ano ou mais que ele levava o trabalho com a barriga.


Opa, para piorar não, para melhorar!, logo ele pensou.


Depois de mais de 15 anos na empresa, com algumas férias vencidas e banco de horas gorduroso tal qual um pastel do Gomes do botequim da esquina, o acerto veio gorducho tal qual o próprio Gomes do Pastel do Gomes, com todas as indenizações que só um CLT demitido tem direito de se lambuzar.


E agora era um homem solteiro! Estava nas pistas! Com dinheiro no bolso!

Logo pensou em pagar uma acompanhante de luxo para suprir todas suas fantasias por anos reprimidas. Mas isso já seria demais para ele. Putas fumam.


E de repente, não mais que de repente, resolveu olhar sua agenda no Google sem nenhuma reunião marcada para ter um regozijo revigorante do mais novo demitido do pedaço. Mas foi aí que uma sinalização chamou sua atenção. Dali poucas horas começaria o evento mais aguardado do ano para todo brasileiro vadio, algo que ele se enquadrava perfeitamente neste momento. Era nada menos que sexta-feira pré-carnaval.


Correu para o Pastel do Gomes e viu que o movimento na rua, na verdade, já era de carnaval. E ele, que agora era um homem e tanto que já até chopinho bebia, viu ali o sinal que precisava para ressignificar toda a sua vida. Já no quarto ou quinto chopinho, pelo celular, começou sua saga de ressignificação.


Comprou passagens pro Rio para domingo – até o impulso, para alguém como ele, não viria potente para ser para o dia seguinte. As passagens custaram os olhos da cara. E reservou um hotel bom, bem localizado e confortável. Esse custou o olho do cu.


Confiou na academia feita de qualquer jeito, pois não havia tempo para montar uma fantasia e precisava apelar para algo próximo da nudez, como uma camisa aberta. Pegou seu avião dali dois dias só com uma mochila nas costas. Largo-a no hotel e caiu na folia.


Não tinha erro: era um homem com multa rescisória, seguro desemprego e, principalmente, sem patrão. E nada mais delicioso como um homem sem patrão.


Como um folião de primeira viagem, começou pelo básico, em Copacabana. Depois passou por Botafogo, Flamengo, Laranjeiras e de lá foi um pulo pra Santa Tereza, até se render à Lapa.


Na Lapa, fez amizade com um ambulante que entregava caipirinhas no capricho. Não demorou muito para pedir ao seu novo amigo para tirar o açúcar, depois para tirar o gelo e por fim o limão. "Quero uma caipirinha cowboy!". O seu amigo ambulante não entendeu nada o que esse cara queria dizer com cowboy, mas sabia reconhecer quando um turista queria ficar doidão. Apresentou outros produtos diferenciados.


Ele fumou um e até baforou loló. Derrubou de uma vez por todas a sua convicção de sem festas & bebidas & cigarros nas calçadas de pedra da antiga capital do Brasil.


Seguiu nos blocos sendo mais um encantado e desinibido na multidão. Deu cantadas e recebeu também. Recebeu uma de um batedor de carteiras ao tentar furtá-lo "que bração forte". Todos o amavam, até os ladrões!


Não demorou para receber outras cantadas. Sua carne já era de carnaval e o samba não podia morrer quando recebeu a mais ousada de todas. "Com todo respeito, que rolão bonito, tá de parabéns" disse um homem de saias que o manjava enquanto ele mijava atrás de um arbusto que ele supôs ser privativo o suficiente para tirar a água do joelho.


Completamente carnavalizado & embriagado & chapado, tomou outro impulso com um grupo de desconhecidos recém-conhecidos e pagou uma pequena fortuna para ir à Sapucaí. Só se vive uma vez! Um brasileiro precisa ir na Sapucaí pelo menos uma vez antes de morrer.


Acontece que para morrer basta estar vivo. E para se colocar em risco de morte, basta estar bêbado.


Bêbado que só ele (e talvez que só Lobisomem e Chico Cachorro), entrou na porta errada e, confundido com alguma subcelebridade, parou no camarote onde estavam Paulo Nunes, Edmundo, Romário, Renato Gaúcho, Vampeta e outros tantos ex-jogadores. Totalmente pavão, entrou na onda do uísque com energético como se fosse o próprio camisa 10 da seleção.


Voando baixo, ainda confundido com um ex-BBB, foi flagrado erroneamente por um perfil de fofoca no Instagram aos beijos com uma ex-panicat. Não demorou muito para a confusão ser descoberta, que famoso ele só fora nos longínquos tempos de funcionário do mês em uma empresa média de contabilidade. Do camarote expulso ele foi aos socos e pontapés. Ao sair, errou mais uma vez em qual porta deveria entrar e, arrastado à força e à porrada, o colocaram uma fantasia de baiana.


- Tem que ter 70 baianas! SE-TEN-TA! Não dá pra gente perder ponto nessa porra esse ano de novo! Te vira pra conseguir as que faltam - alguém gritava.


Uma piscada dolorida e quando se deu conta, era ele que estava no meio da Sapucaí rodeado de outras tantas baianas e com arquibancadas lotadas em volta. Se por um lado não conseguia assimilar o que se passava, por outro, começava a achar bonito estar ali no meio.

A mesma voz agora berrava:


- Gira, porra, tem que girar!


Ao identificar a origem da voz, viu que a voz tinha corpo de dimensões 2x2 e o corpo tinha uma arma na cintura.


- Tô falando como você, ô paraíba, é pra girar!


Nunca tinha visto uma arma de perto antes e não hesitou. Rodou mais que o peão da casa própria.


- Gira menos, porra, acompanha a porra do ritmo da música! Isso! Cadência, paraíba!


Mas a cadência não adiantou de coisa alguma para o que viria logo a seguir.


O dia de cachaça & maconha & loló & uísque & energético & porrada no fígado começou a pesar demais nos giros e no calor infernal daquela roupa de baiana. Se sentia um acarajé fritando no dendê. Sentia vertigem. Suava bicas.


O jorro de gorfo embileado veio ácido e amarelado, deixando a roupa de baiana viscosamente manchada.


- Puta que pariu! Alguém tira esse paraíba daí!


Outro jorro, dessa vez no meio do rodopio, atingindo outras baianas. Ele escorregou no próprio fluido ácido e viscoso e desmoronou, fazendo um strike com as baianas de trás e do lado.


- Ih, rapaz, com certeza isso custará alguns pontos de evolução para a escola - já se adiantava na análise Alex Escobar na cabine da Globo.


O homem 2x2, no desespero, entrou no meio da ala e tirou ele dali com extrema destreza diante da situação, como se ele se fosse uma criança de colo.


Outro jorro de vômito.


- Filha da puta! Quer morrer?? Me cagou todo de vômito esse viado!


Mas ele já não respondia mais.


O homem 2x2 entregou o corpo desfalecido para outros dois colegas brucutus.


- Joga esse filho da puta em qualquer canto.


- Que canto?


- Te vira, mermão! Preciso trocar de camisa pra tirar essa catinga.


--


Ele acordou no dia seguinte, em uma rua adjacente ao Theatro Municipal. Sem roupas, sem documentos, sem celular, sem dinheiro, sem um dente na frente. Só lhe restava sua cueca e com ela um suspiro de dignidade. Seu corpo ardia em hematomas e em queimaduras de sol.


Não entendia nada, não se lembrava de nada. Só sentia. No corpo, as dores nos pontos de hematomas; na alma, beatitude, uma leveza paradoxal. E na boca, um gosto azedo e agridoce, misturado com o sabor de ferro do seu sangue alcalino.


Quanto mais tentava recordar, menos se lembrava de coisa alguma. Quanto mais o corpo doía, mais alegria sentia.


Procurou algum pedaço de pano para cobrir o resto do corpo semidesnudo. Andou sabe-se lá se 20 metros ou 2 quilômetros e, que sorte! Encontrou uma fantasia em farrapos. Uma fantasia de baiana.


Um pouco manchada, mas não tem problema, a fantasia cabia nele, mesmo que um pouco apertada. Mas quem liga?


Ouviu ao longe um barulho de multidão. O barulho se aproximava. O barulho estava cada vez mais perto. Era um bloco cantando, na rua ao lado, a alegria de ainda ser carnaval.

Ele se aproximou.


- Que fantasia diferente a sua! É de bolo de noiva desconstruído?


Uma mulher já bêbada às 8 e meia da manhã, mais ou menos da idade dele o elogiava. Era sinal de que, apesar de mal fisicamente, não estava tão mal assim. Sua alegria, sabe-se de lá de onde, compensava no seu espírito.


Até que um lapso de sobriedade lhe ocorreu numa fração de milésimos de segundo, o suficiente para abrir uma fenda de memórias lúcidas em seu cérebro desidratado e ressaqueado.


- Lucia?


- Waldinho?!


Foi assim que, em uma segunda-feira de carnaval, Waldo reencontrou a sua paixão de infância e adolescência que um dia, em um longínquo carnaval, em um acampamento no interior do interior décadas atrás, teve sua vida íntima difamada. Não que não quisesse dar, mas nunca que daria pro Sander, filho do Macedo da mercearia, muito menos em um acampamento xexelento. Pra Waldinho, quem sabe? Mais do que um reencontro com sua antiga paixão, era um encontro com ele mesmo.


Waldo abriu seu sorriso desfalcado e, no alto de seus anos de experiência em contabilidade, tinha certeza que poderia usar todas as planilhas de Excel, calculadoras científicas ou qualquer outro software do momento que não conseguiria contabilizar a alegria que sentia naquele milagre de carnaval. Alegria tão grande essa que não se acabaria na quarta-feira. Não para ele.

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