Boa viagem
- Neris Reis
- Jul 15, 2020
- 16 min read
Updated: Jul 16, 2020
Era uma vez, talvez duas ou três, nunca saberemos, porque essa é mais uma daquelas histórias banais que se perdem no meio de tantas outras histórias banais, mas que não deixa de ter o seu brilho e sua ternura.
Então, era uma vez Alfredo da Silva Bianchi Filho. Mais conhecido em sua infância na turma do futebol do bairro como Alfredinho dos Bianchi da Rua das Laranjeiras, já que coincidentemente existia outro Alfredinho na turma, esse dos Vilella da Rua das Amendoeiras. Ou também mais conhecido apenas por Alfredinho, quando voltava para casa todo sujo e com joelhos ralados pronto para comer um belo pão com manteiga e leite com café. Ou ainda conhecido como Alfredo Filho, quando voltava para casa todo sujo e com os joelhos ralados pronto para comer um belo pão com manteiga e leite com café, mas tinha se esquecido de fazer o dever de casa antes de sair para jogar bola.
Quando acontecia de não fazer o dever, não era por não querer. Era porque Alfredinho, além de ser um razoável ponta-esquerda, nada comparado ao seu xará da Rua das Amendoeiras, é verdade, tinha outros hobbies maiores, como admirar o mundo, o céu, a Aninha da Rua das Oliveiras, as nuvens e os pássaros. Era obcecado por saber como os pássaros voavam, alguns de flor em flor, outros de árvore em árvore, outros ainda tão alto no céu, outros curtíssimas distâncias dentro de gaiolas. E com tanta prática para observar o mundo com tamanha admiração, desenvolveu dois talentos: o primeiro, ficar com a cabeça nas nuvens a ponto de se esquecer de fazer o dever de casa; o segundo, escrever poesias inocentes de criança.
Começou simples, com três versos:
Quando eu vi uma joaninha Eu lembrei da minha vizinha A Aninha
Sentia que este começo era promissor, mesmo antes de saber da existência da palavra “promissor”. Aos poucos, foi arriscando quatro versos:
Que engraçado Nas casas da Rua das Laranjeiras Não tem laranja Mas tem arame farpado
Cinco versos:
No céu tinha uma nuvem Com a forma de cavalo Chamei minha mãe para mostrar E o cavalo não tava mais lá Foi pastar
E até seis versos:
Ontem joguei bola E perdi a hora Do jantar Depois de dibrar Chutei para abrir o placar Que pena, fiz gol contra
Com um início espetacular de um jovem prodígio, Alfredinho se sentiu pronto para ler na frente de toda a turma sua obra prima de sete versos, que tinha feito especialmente como dever de casa de português.
Como aspirante a poeta que era e com seu caderno em mãos, fez toda a pose que a ocasião pedia, pigarreou, respirou fundo e começou:
No céu tem muitos passarinhos De várias cores Vindos de muitos ninhos
Um deles é mais bonito De cor azul-marinho Que voa tão perto do luar Que não ouvo ele cantar
Todos começaram a rir na hora. Alguns gargalhavam. Outros chegavam a apontar o dedo. Até Aninha ria um pouco sem graça. Alfredinho olhava para os lados desesperado, sem entender. Olhou para a tia, que tentava segurar o riso sem graça e pedia que parassem de rir. Gentilmente, a tia se abaixou e disse:
- Muito bom, Alfredinho, parabéns! Mas o certo é “ouço” e não “ouvo”.
Alfredinho não conseguia ouvir mais nada, só via os rostos que teimavam em gargalhar e sentia o fervor do sangue penetrando em seu rosto. Sentiu pela primeira vez o constrangimento da rejeição dos grandes poetas. Como que ele, no alto de seus oito anos bem vividos, poderia imaginar que o certo seria “ouço” e não “ouvo”? A língua portuguesa mostrava pela primeira vez sua magia. De forma cruel, é verdade, mas era uma magia.
Desolado, Alfredinho fechou o seu caderno e voltou para a sua carteira tentando engolir o choro e fingindo que ria da situação como todos. Daquele dia em diante, sua promissora carreira de poeta entraria em um longo hiato. Porém, seres sensíveis e distraídos não perdiam a sensibilidade com tanta facilidade. No máximo, ela se escondia dentro de alguma entranha cavernosa esperando a hora de mais uma vez desabrochar peito afora.
E de tanto admirar o céu e o mistério do voo dos passarinhos, cresceu com o sonho de voar; de tanto ficar com a cabeça nas nuvens, estudou muito para realizar seu mais novo sonho e desenvolver seu terceiro grande talento.
Alfredo da Silva Bianchi Filho tornou-se piloto de avião, sendo anos mais tarde mais conhecido como comandante Bianchi.
***
Antes de se tornar o famoso comandante Bianchi, porém (sim, Alfredinho ficou famoso), Alfredo trilhou o caminho de qualquer cidadão comum que tem um sonho fora do comum Direito, Medicina e Engenharia – que em sua época já seria uma empreitada ousada. Contou para a mãe os seus planos, que sempre o imaginou como doutor. Ela primeiramente ficou um pouco desanimada com os planos que o filho traçava para si, mas logo imaginou o seu Alfredinho em uma belo uniforme vistoso como um galã de cinema. Alfredinho conquistou, então, o apoio da mãe.
Seu pai, por sua vez, ficou desapontado por mais tempo. Sempre imaginou que seu único filho, que carregava o seu nome e sobrenome, também carregaria a vocação para as leis. Porém, depois que Seu Genaro, o patriarca dos Bianchi que lutara na Primeira Grande Guerra antes de se mudar para o Brasil, se adoentou após um mal súbito, Alfredo, o pai, imaginou que o filho seguiria a vocação do avô como militar, se tornando um grande piloto da Aeronáutica. Com isso, aceitou de bom grado o destino de Alfredinho.
Alfredo, o filho, mais sensível, menos ambicioso e mais discreto, fingiu acatar a ideia do pai de se tornar piloto da Aeronáutica na esperança desta ideia cair no esquecimento. Escolheu pra si embarcar em seu sonho pelo caminho dos verdadeiros amadores românticos. Começou na Escola de Aviação em um monomotor Cessna 172 (seus primos tentavam o irritar chamando Alfredinho de piloto de teco-teco – nada que o abalasse em sua empreitada), experimentou as emoções de planadores e se aventurou na liberdade de asas-deltas aos fins de semana. Passou depois para o bimotor a pistão Piper Seneca e completou as horas de voo necessárias para conseguir emprego como piloto de turboélices, com desataque no vistoso e novíssimo Embraer EMB-110 de um poderoso fazendeiro do sul do estado. Os turboélices para Alfredinho, porém, eram apenas um trampolim para chegar onde estava sua verdadeira ambição: ser piloto de Boeing em companhias aéreas comerciais.
Muito discreto durante toda a sua jornada, permitiu-se festejar quando finalmente conseguiu um emprego de copiloto na Varig. Reuniu toda a família em um domingo de almoço farto, como a tradição dos Bianchi pedia. Fez questão de vestir o uniforme, com quepe, Ray-Ban e tudo mais. Ignorou solenemente as chacotas dos primos e se permitiu ser amado pela mãe e pelas tias. Alfredo, o pai, deu um forte abraço no filho e falou no seu pé do ouvido:
- Quando me disse que gostaria de ser piloto, imaginei que te veria em outra farda...
Alfredinho ouviu o pai com certo pesar. Serenamente tirou os óculos e respondeu:
- Me desculpe... Nunca quis desapontar o senhor...
Alfredo, o pai, respondeu com os olhos marejados de orgulho:
- Não se desculpe, meu filho! Você só me desapontaria se não seguisse os seus sonhos.
Estas palavras foram mais fortes em seu coração que o bater de asas de uma borboleta. Ver as lágrimas romperem a barreira quase que intransponível de seu pai (a última vez que lágrimas ousaram escorrer daqueles firmes olhos fora no falecimento de seu Genaro) era muito mais que qualquer condecoração militar. Alfredo estava completamente formado, pronto para voar carregando mais de uma centena de almas passageiras. Despertava ali um Alfredinho há anos adormecido.
***
Alfredo começou sua carreira na Varig como copiloto do experiente comandante Cruvinel, que logo se tornou uma espécie de seu mentor dos ares. Ensinou para Alfredo os três valores que um piloto digno deveria carregar consigo: respeito com as comissárias de bordo, mesmo que elas se assanhassem; cuidado com os passageiros, mesmo que eles não fizessem por onde exagerando nos drinks; e nunca, em hipótese alguma, negar uma foto a uma criança na cabine, mesmo que ela fosse feia. Esses valores eram regras que poderiam ser rompidas a qualquer momento, desde que Alfredo não quisesse ser um piloto digno.
Digno que era, Alfredo manteve o foco em seu ofício para que nada saísse da linha, fizesse sol, fizesse chuva. Sempre que voava com o comandante Cruvinel, aprendia mais um pouco, da ordem correta de checagem de equipamentos até como empostar a voz na hora de falar com passageiros e tripulação.
Certa vez, logo após uma decolagem em Manaus com destino à Fortaleza, Alfredo viu um pássaro azul-marinho que lhe surgiu como um gatilho. Quando o comandante Cruvinel preparava-se para falar com os passageiros pelo interfone do avião, Alfredo pediu:
- Posso tentar?
O piloto estranhou o pedido de seu copiloto, geralmente muito calado e observador. Com certo orgulho do aprendiz, autorizou:
- Faz teu nome!
Alfredo, com o cuidado e reverência que a ocasião pedia, pigarreou, respirou fundo, empostou a voz e fez o seu primeiro contato oficial com os passageiros como piloto de avião comercial:
- Senhoras e senhores passageiros, bom dia! Aqui quem vos fala é o primeiro oficial Bianchi. Em nome do comandante Cruvinel e toda a tripulação, desejamos um ótimo voo...
O comandante Cruvinel sorriu pra Alfredo que, para surpresa do piloto principal, respirou fundo mais uma vez e continuou:
- E desejamos também que saibam admirar as nuvens e tudo que está no céu. Afinal, você pode até ter os pés no chão na maior parte do tempo, mas para ir de encontro aos seus sonhos é preciso antes de tudo chegar às nuvens. Pela atenção, obrigado e boa viagem!
Silêncio na cabine.
O comandante Cruvinel olhava para Alfredo com os olhos arregalados tais quais duas bolas de gude muito grandes. Como estava sem o quepe, era possível ver os poucos fios de cabelos brancos que lhe restavam no alto da cabeça totalmente em pé. Alfredo engoliu seco e sorriu amarelo. Resolveu quebrar o silêncio.
- Esqueci de falar o tempo de...
- QUE PORRA É ESSA, BIANCHI?!
Alfredo tentou se defender:
- Eu só desejei boa viagem...
- Boa viagem? Boa viagem?! Você conseguiu se ouvir enquanto tentava dar uma de Hamlet cheio de ser e não ser?
Uma leve batida na porta da cabine interrompeu o comandante Cruvinel. Era a comissária Rosangela, o que obrigou o comandante Cruvinel, educado que era, se recompor na medida do possível.
- Com licença, comandante. É que uma pessoa queria vir na cabine...
- Rosangela, ainda não está na hora das crianças...
- Não é uma criança...
- Então quem é?
Rosangela liberou a passagem e uma elegante e sorridente senhorinha surgiu através da porta.
- Oi, meninos! Desculpa incomodar, mas achei lindíssima a mensagem de vocês! Eu tenho muito medo de voar, mas nunca tinha parado pra pensar na beleza de estar tão perto das nuvens. Logo eu, uma sexagenária, que já já vai estar morando nessas nuvens, com medo de voar! Ó, tomem aqui esses bombons de cupuaçu que eu mesma fiz. Era para minha netinha, mas, bom, vocês merecem!
Dona Lourdes saiu da cabine tão ou mais sorridente do que entrou. Rosangela olhava para o comandante Cruvinel, depois para Alfredo e por fim novamente para o comandante. O piloto, por sua vez, tinha os olhos fixos em seu copiloto. Alfredo, que não tinha para onde correr, tentou se desvencilhar do embaraço:
- Ganhamos bombons!
- Não coma agora, você pode se intoxicar e eu não vou querer pilotar esse Boeing por 3 horas sozinho.
Rosangela, que conhecia o comandante há mais milhas que Alfredo, sentiu que por trás da pose robusta do comandante havia sim uma repreensão pela atitude do copiloto, mas havia também admiração. Por isso, com um amável sorriso, deixou os dois a sós, não sem antes ouvir o comandante falar com Alfredo:
- Você assume o manche agora. E nunca mais faça isso.
Alfredo obedeceu a primeira ordem. Quanto a segunda, ele não poderia prometer cumprir para sempre.
***
O glamour da aviação civil seguiu por bons anos, o que foi tempo o suficiente para Alfredo amadurecer sob o regime dos valores aprendidos, conhecer de cor praticamente todos os aeroportos do Brasil e usufruir de luxos da profissão, como bons hotéis e excelentes refeições de bordo. Muitas horas de voo depois, Alfredo se tornou um dos pilotos principais da companhia, passando a ser mais conhecido, agora sim, como comandante Bianchi do que pelo seu primeiro nome. Foi mais ou menos nesta época que o comandante Cruvinel resolveu se aposentar, com muitos louros e nostalgia:
- Lembra daquela vez que você resolveu declamar poema na cabine?
- Lembro vagamente – respondeu Alfredo, dando uma de desentendido do assunto.
Quando seu principal mentor dos ares se recolheu, Alfredo se sentia completamente livre para voar em perfeita sintonia com todos os seus talentos.
Resolveu experimentar essa sensação de liberdade e autonomia em uma tarde sonolenta, logo após o almoço, em uma ponte área:
- Senhoras e senhores passageiros, boa tarde. Aqui quem vos fala é o comandante Bianchi... É... Em dentro de instantes, pousaremos no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Mas nunca se esqueça: se na vida aterrissamos é para depois alçarmos voos ainda maiores. Pela sua atenção, obrigado e boa viagem!
Desde Camões, a língua portuguesa não presenciava um autor tão satisfeito com a própria obra de viagem que começava a declamar. Podia não ter o mesmo valor semântico, muito menos o mesmo valor de registro histórico, mas a satisfação... Ah, essa ninguém tirava de Alfredo, nem do comandante Bianchi, muito menos de Alfredinho.
Seu copiloto da ocasião o olhava abasbacado:
- Então é verdade! Você faz isso mesmo!
- Olha pra frente que já estamos chegando.
Em uma noite na semana seguinte, em um voo para Porto Alegre, lembrou-se de quando apenas olhava para o céu pensando em como os pássaros voavam e em Aninha, sua antiga vizinha da Rua das Oliveiras, e sonhava em ser grande poeta. Lembrou de tudo o que passou para chegar até ali. A inspiração veio naturalmente:
- Senhoras e senhores passageiros, boa noite. Aqui quem vos fala é o comandante Bianchi... Estamos agora numa altitude de 37 mil pés, o que quer dizer que estamos bem mais perto das estrelas do que há 10 minutos atrás. E se você pudesse fazer um único pedido para uma estrela cadente para daqui 10 minutos, qual pedido você faria? Aproveite para realizar e boa viagem!
Gradativamente, os 15 minutos de fama do comandante Bianchi e suas mensagens poéticas dentro do avião aumentavam em tempo e em fronteira, chegando aos aeroportos dos quatro cantos do Brasil. Era cumprimentado por aeromoças e pilotos da Varig e até mesmo da Vasp e da Transbrasil.
Tudo era objeto de inspiração para Alfredo. Aproveitava-se, por exemplo, de seus conhecimentos turísticos:
- Senhoras e senhores passageiros, bom dia. Aqui quem vos fala é o comandante Bianchi... O tempo de voo é estimado em três horas e trinta minutos, com previsão para chegada ao Aeroporto Augusto Severo, em Natal, às onze horas e vinte e três minutos, horário local... É... O tempo em Natal é bom, temperatura de 30 graus Celsius, ideal para um mergulho na praia de Pipa ou de Ponta Negra. Mas nunca se esqueça: de nada adianta o tempo quente a um coração gelado. Assim como de nada vale um mar de possibilidades se você não estiver disposto a mergulhar em alguma delas. Pela sua atenção, obrigado e boa viagem!
Suas mensagens tocavam cada vez mais passageiros, tudo graças a combinação de palavras certas, pausas dramáticas e, oportunamente, almas carentes:
- Senhoras e senhores passageiros, boa noite. Aqui quem vos fala é o comandante Bianchi diretamente da cabine de comando, o que me faz lembrar das cabines telefônicas espalhadas por aí, que a gente entra para ligar e dar boas notícias. Em breve chegaremos ao nosso destino final, estamos começando os procedimentos de decida e fica aqui a sugestão: por que você não aproveita e, logo após sair da aeronave, dá uma boa notícia para aquela pessoa que você não fala há tanto tempo? E se achar que não tem uma boa notícia para dar, lembre-se que a boa nova sempre pode ser um simples “alô” dito pela sua voz. Pela sua atenção, obrigado e boa viagem!
Nesta noite, passando pelo saguão do aeroporto para tomar uma Coca-Cola em alguma lanchonete, Alfredo recebeu um abraço repentino de um homem que, se não fosse a face banhada por lágrimas tal qual uma criança, teria um ar professoral e pouco vulnerável:
- Eu vi! Eu vi você saindo do avião! Você é o piloto da mensagem, não é?! Tá no seu crachá! Obrigado! Obrigado! Fazia mais de 10 anos que não falava com meu irmão! Vou me encontrar com ele amanhã! Se não fosse você... Obrigado! Fica com Deus! Obrigado!
Certa vez, semanas depois, uma comissária comentou antes do embarque que naquele dia havia um time de futebol que disputaria um jogo importante do campeonato no dia seguinte. Aproveitando a deixa, logo após a decolagem, Alfredo emendou:
- Senhoras e senhores passageiros, boa tarde! Aqui quem vos fala é o comandante Bianchi. O tempo de rota é bom. Estamos em velocidade de cruzeiro, o que me fez lembrar que hoje todos nós fazemos parte de uma constelação campeã. Não porque não precisamos ter medo ou porque precisamos provar algo para alguém, mas porque precisamos ter coragem de provar para nós mesmos que temos capacidade de alcançar tudo o que quisermos – até mesmo as estrelas. Isso é ser vencedor, independentemente de qualquer resultado. Pela sua atenção, obrigado e boa viagem!
Mais ou menos na metade do tempo de voo, Alfredo liberou a cabine para receber as crianças ansiosas por uma foto com seu quepe. Depois de atender pacientemente cada uma delas, algo inimaginável aconteceu.
- Alfredinho dos Bianchi!
Alfredo era novamente Alfredinho dos Bianchi da Rua das Laranjeiras. Isso se deu não pelo contato com tantas crianças, em um número atípico naquele dia, mas porque pela porta, ao fim da fila, surgiu Alfredinho – o dos Vilella da Rua das Amendoeiras, dessa vez vestido com o uniforme de viagem do time do Cruzeiro.
- Mas é claro que você ia se tornar jogador! Que surpresa agradável!
- Surpresa? Eu ouvi a sua mensagem! Aliás, o time todo ouviu! Vamos vencer amanhã! Toma: uma camisa autografada por todo mundo! Quando eu ouvi a voz e essa mensagem, só podia ser você, com essa sua onda de fazer poesia com tudo. E é claro que virou piloto, só vivia com a cabeça nas nuvens! Bom te ver, Alfredinho! Ou devo lhe chamar só de comandante Bianchi?! Bom te ver!
Só depois de uns 10 minutos que o piloto entendeu o que havia acontecido: o time que carregava a bordo era o time do Cruzeiro, que entendeu que “velocidade de cruzeiro” era uma referência a eles. A mensagem, de fato, tinha um intenção motivacional, mas não era direcionada a nenhum time específico. Mesmo assim, lhe rendeu uma viagem de volta ao passado e uma lembrança que guardaria para o resto da vida emoldurado na parede de sua sala. Ganhar lembranças, aliás, começou a ser comum desde que Alfredo passou a dar seu toque de sensibilidade nas mensagens de bordo. De isqueiros e lenços bordados a potes de ambrosia, passando por cartões de visita com recados no verso e até mesmo executivos lhe oferecendo dinheiro na saída do avião pela experiência agradável do voo. O que Alfredo não podia entender naquele dia é que seu xará futebolista morria de medo de viajar de avião e, assim como centenas de passageiros que ouviam as mensagens do piloto, perdeu o medo de voar para sempre – infelizmente toda a confiança adquirida nos ares não foi suficiente para o Cruzeiro sair vencedor no dia seguinte.
Passados mais alguns meses, ao final de uma ponte aérea sem sustos com o avião abarrotado de homens engravatados e semblantes sérios, Alfredo falou com seus passageiros no intuito de chamar a atenção para a beleza do aeroporto mais bonito que existia no Brasil, segundo sua humilde opinião:
- Senhoras e senhores passageiros, bom dia! Aqui quem vos fala é o comandante Bianchi, diretamente da cabine de comando. Em dentro de aproximadamente 10 minutos completaremos mais uma ponte área no Aeroporto Santos Dumont. Muitos de vocês devem estar aqui hoje a trabalho e, eventualmente, podem enfrentar alguma crise, o que é normal. Nestas horas, em caso de emergência de pensar em largar tudo, olhe para a janela e sinta o privilégio desta paisagem: vai dar tudo certo. E se mesmo assim tiver a certeza que vai largar tudo, a dica é a mesma: olhe para a paisagem que está na sua janela, que também vai dar tudo certo. E em qualquer acaso, desfrute desta beleza mais de perto, não só pela janela. Pela sua atenção, obrigado e boa viagem!
Na saída do avião, uma repórter da revista Veja o esperava. Disse que achou de grande beleza a mensagem dita na cabine e que conseguia ver o brilho no olhar até mesmo nos engravatados mais sisudos e de sensibilidade quase intransponível. O convidou para uma pequena reportagem para dali duas ou três edições. A história do “piloto poeta” ganhou notoriedade nacional. Isso contribuiu para que Alfredo fosse respeitado com suas atitudes, que muitos pilotos mais conservadores chamavam de “desvio de função” e “falta de profissionalismo”. Também contribuiu para que novos pilotos entendessem que a arte daquele ofício era muito mais que dar asas aos humanos – era cuidar de corações aflitos que por algum motivo precisavam se deslocar pelos ares, seja a trabalho, seja a turismo ou até mesmo para consumar o luto da perda de um ente querido em um estado distante. Era uma oportunidade de reconectar almas ao sentido da existência.
Alfredo continuou sua majestosa trajetória, chegando a ser reconhecido pela própria Varig quando ganhou destaque em uma das edições da revista de bordo, o que para ele foi uma das maiores honras de sua carreira.
Claro que um piloto tão experiente não viajaria apenas por brisas, mas mesmo em adversidades conseguia destilar beleza e abstração, como em uma das inúmeras turbulências que encarou:
- Boa noite, senhoras e senhores passageiros! Aqui quem vos fala é o comandante Bianchi. Estamos passando por uma zona de turbulência. Por isso, afivelem seus cintos de segurança e tenham sempre consigo que turbulências na vida acontecem com todos, até mesmo para os cidadãos mais opostos; mas aproveitar a calmaria que vem logo depois é para os poucos que estão com seus corações dispostos. E você, está disposto? Pela sua atenção, obrigado e boa viagem!
Poucos minutos depois, ao fim da turbulência que chacoalhou com as emoções de todos, foi possível ouvir de dentro da cabine a saraivada de palmas e assovios que vinha do restante do avião em reverência a Alfredo.
Com o passar dos anos, a popularidade de suas mensagens caíram assim como o glamour da aviação civil brasileira. As pessoas estavam cada vez mais impacientes e aos poucos todos os luxos que envolviam o contexto de voar desapareciam, assim como a experiência tornava-se banal, já sem despertar grande temor em quem viajava. Nada que abalasse o calejado comandante que há tempos sentia que sua missão estava cumprida. Um último grande desafio, porém, ainda o esperava.
Ao final de um voo, partindo de Vitória com destino à Brasília, que se fez tranquilo na maior parte do tempo, quando já se preparava para os procedimentos de pouso da aeronave, do mesmo céu que tanto inspirou Alfredo durante toda a sua vida, surgiu, ironicamente, uma revoada de pássaros, que atingiu em cheio as duas turbinas do avião, ocasionando a perda total dos motores. Não havia tempo hábil para planar até nenhum aeroporto. O pouso de emergência era a única saída.
Nesta situação, a função do piloto nunca deve ser a de gerar pânico. Suas ações devem ser sutis e objetivas. Contudo, o estrondo causado e o fogo que era possível ser visto saindo das asas despertou o desespero em todos, até mesmo nos passageiros mais frequentes: o ateu rezava todos os Pai Nossos e Ave Marias acumulados de uma vida inteira; o religioso perdia a fé e entendia aquilo como um castigo por todos os seus pecados; o deputado balofo enfartava e morria antes mesmo de saber se poderia ser salvo pelo pouso emergencial; o amante chorava, não pelo medo da morte, mas por vergonha de ter seus adultérios descobertos na ocasião de seu velório; o precavido tirava a identidade da carteira e colocava entre os dentes para facilitar o trabalho dos bombeiros caso morresse carbonizado – morria de medo ser enterrado como indigente; a criança, que nada entendia e que passara boa parte do voo chorando, agora se divertia com a algazarra e o pânico dos adultos. Haviam ainda aqueles que davam as mãos para os estranhos ao lado e aqueles que tinham o sono tão pesado que nada percebiam.
Dentro da cabine, Alfredo torcia para que nenhum daqueles passageiros estivesse voando pela primeira vez: seu maior temor era traumatizar alguém com a beleza que era ver o mundo por uma perspectiva tão bela e nunca antes vista. Então, 46 anos, quatro meses e três dias depois de escrever o seu primeiro e grandioso poema de três versos, e depois de 12.322 horas de voo, as quais ele havia perdido as contas já fazia muito tempo, declamou suas palavras com serenidade, em um grande ato de bravura, antes de tentar a manobra que definiria o destino de todos a bordo:
- Senhoras e senhores passageiros, aqui quem vos fala é o comandante Bianchi. Depois de tantas idas e vindas, esta é a viagem de nossas vidas. De todas, a maior. Por isso, darei o meu melhor. Não desistam e afivelem seus cintos de segurança. Atenção, tripulação, preparar para o impacto. Senhoras e senhores passageiros... Boa viagem!
Que bonito :)
Esse provavelmente é o meu favorito de todos os seus textos que já li. Na minha cabeça o Bianchi conseguiu. Bravo, comandante Reis!!!