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Um sopro da vida (ou um vendaval de ironias sem destino)

  • Writer: Neris Reis
    Neris Reis
  • Mar 30, 2021
  • 6 min read

Todo mundo tem um lugar comum, uma zona de conforto, um lugar para onde voltar quando parece que está tudo confuso lá fora. Aliás, não sei se todo mundo tem, mas se não tem, recomendo ter, é bom ter. Não sei se é o melhor conselho, não sou bom em conselhos, não tenho nem idade para dar conselhos. Certamente muito se fala sobre justamente sair da zona de conforto. Mas a questão aqui é ter essa zona de conforto, não necessariamente estar, pois nunca sabemos quando vamos perdê-la.

Meu primeiro contato com Contardo Calligaris foi ainda no colégio. O conheci apenas pelos seus textos, sem saber quem era o rosto por trás daquilo. O conheci, apesar dele não saber disso. Ele estava em alguns dos tantos textos de coletâneas das aulas de redação preparatórias para o vestibular. Nessa época eu já tinha o meu primeiro blog e, modéstia à parte, eu era um dos melhores alunos de redação da escola, mas levava a matéria na barriga. Foi justamente nessa época que comecei a mudar a minha visão sobre o texto escrito, sobretudo texto analítico, as famosas resenhas. Foi ali que encontrei um dos primeiros lugares onde eu queria chegar na escrita. E vi que, agora sem falsa modéstia, eu não escrevia nada.

No meu primeiro ano de faculdade, já conhecendo um pouco dos textos de Contardo, fui para o FICA, uma catarse universitária que flertava com o cult, onde jovens de humanas iam para a antiga capital de Goiás a fim de se embebedarem e ouvir Rita Lee usando como pretexto o cinema ambiental. Em um raro momento de sobriedade, entrei com vários transeuntes de ressaca em uma palestra abarrotada de gente. Uma das atrações da mesa debatedora era ele, o senhor Calligaris. Confesso que não lembro de nada do teor da palestra, sequer sabia o tema, se era o debate de algum filme que havia sido exibido ou outro tópico intelectual qualquer. Deduzo que era algo que relacionava psicanálise e cinema. Fala a verdade, nada mais biscoito fino da cultura do que um papo desses. Se sou jovem hoje, dez anos atrás então, nem sei o que eu estava fazendo ali. Ainda estava naquela de não fazer ideia se o FICA era para beber com só cinco reais no bolso ou se era para se tornar mais inteligente. Matuto que sou, só olhei de longe e sorri.

A segunda vez que o vi foi dois anos depois, em uma viagem atordoada para São Paulo. Eu estava em um bar/restaurante de frutos do mar muito bonito (neste ponto leia-se: eu não tinha dinheiro para estar ali pois eu ainda era um universitário). Coincidentemente isso aconteceu em uma semana santa, tal qual essa em que escrevo este texto. O vi entrar e se encaminhar sozinho para o balcão. Eu não o reconheci logo de cara. Só uns dez minutos depois me veio um estalo e lembrei de quem se tratava. Pensei em me aproximar e trocar uma ideia, o que na minha cabeça era uma cena ridícula, já que nem dinheiro pra conta eu tinha, quanto mais postura pra uma conversa casual com um psicanalista renomado. Falei com o garçom para ver se me ajudava no approach. O garçom prontamente se animou e foi falar com ele. A resposta não podia ser mais verdadeiramente decepcionante: o suposto Contardo falou pro garçom que eu havia me confundido.


Uma hora depois mais ou menos o homem deixou o bar. No mesmo instante, o garçom veio até mim e me deixou um bilhete escrito à mão. O bilhete falava sobre o texto da coluna dele publicada na Folha naquele mesmo dia. E sua assinatura. Obviamente perdi esse bilhete e hoje ele só existe na minha lembrança e nesse texto aqui.


Segui na minha vida universitária. Me tornei estagiário do Núcleo de Comunicação do TRT. Uma das minhas funções era a de fazer clipping, que consistia em buscar os jornais do dia na portaria e folheá-los em busca de notícias relacionadas à Justiça do Trabalho e ao próprio Tribunal. Função chata, que ninguém em sã consciência iria querer para si. Mas quando se está no inferno, a melhor opção é abraçar o capeta. Tratei logo de achar o lado bom disso. E o lado bom era ter acesso ilimitado aos melhores jornais do Brasil, como Folha, Correio e Valor Econômico. Entre as inúmeras colunas e cadernos de imensa qualidade, estava a coluna de Contardo Calligaris, às quintas, na Ilustrada da Folha, a minha favorita. Foi o contato mais próximo, quase íntimo, me arrisco a dizer, com Calligaris.


Na coluna, ele explorava diversos temas da atualidade, de política à filmes cults, sexo e sexualidade, passando por assuntos quentes da semana, movimentos sociais, protestos ou somente histórias antigas da própria vida e da psicanálise. Isso sem falar, é claro, da vida e da morte. Uma leitura apurada de rara lucidez em tempos tão fanáticos que começavam a desenhar o caos que vivemos hoje. Destaque para a escrita impecável e para a forma como ele abordava conteúdos complexos com elegância, sem perder a clareza para os leigos que o liam, como eu. Foi por causa da coluna que descobri alguns filmes interessantes, procurei alguns livros que nem tinha como eu cogitar antes e visitei alguns mundos muito distantes do meu, como a Itália do pós-guerra, a França dos anos 50 e 60, os Estados Unidos dos anos 70 e 80 e o Brasil dos anos 90 pela ótica de um estrangeiro. Não é demais lembrar que Contardo é italiano, o que torna o prazer da leitura uma experiência ainda mais inusitada, já que o português não é sua língua nativa, sequer seu segundo ou terceiro idioma.


Por causa da coluna, comprei a coletânea “Todos os reis estão nus”, seu livro publicado pela editora Três Estrelas com um apanhado de aproximadamente uma década dos seus textos para a Folha de S. Paulo. Não vou lembrar o recorte de tempo com exatidão.

Com o livro em mãos e devidamente lido (e indicado para quem quisesse ouvir, aliás, fica a dica), tive o meu terceiro e último encontro pessoalmente com Calligaris. Foi em um evento que costumava acontecer em Goiânia chamado Café Filosófico, que ocorreu no Centro Cultura Oscar Niemeyer, em 2015. Como a ocasião do evento permitia, ao final fui tietar. Pedi um autógrafo em italiano no meu exemplar de seu livro – na época eu fazia aula de italiano. Ele gentilmente respondeu que já nem lembrava mais como se falava em italiano, mas que ia tentar lembrar para escrever o meu autógrafo. Depois tiramos uma foto, que postei no Instagram com muito orgulho.


Infelizmente, e como se pode imaginar se tratando de mim, não sei mais onde está o livro que, por tanto adorar, emprestei para algumas pessoas e já não me lembro quem foi a última, que provavelmente também não lembrou de me devolver. Ficou a foto daquele dia e a memória.


Uma coincidência que mostra como a vida é de fato um sopro misturado com um vendaval de ironias sem destino, foi que hoje mais cedo eu estava procurando um texto seu para enviar para um amigo (sempre eu recorrendo ao meu lugar comum de referência). Ao cair na página de sua coluna na Folha, olhei bem para a foto daquele senhor que já passava dos 70 anos de idade. O encarei com certa inveja. Dessa vez não só pela admiração intelectual, mas por pensar no tanto que aquele senhor estava bem, inteirão. Refleti a sorte que eu tinha. “Que bom, esse aí vai escrever até depois dos 100 anos de idade”, eu pensei. Pouquíssimas horas depois soube do seu falecimento. Não sabia que ele lutava contra um câncer. Me senti um péssimo admirador.


Já faz alguns anos que não acompanho semanalmente a sua coluna por falta de acesso constante à Folha de S. Paulo. Por mais que eu gostasse muito, era aquele lugar comum que eu sabia que podia voltar sempre, pra sempre, o que deixa o conforto de poder voltar depois. E o pra sempre chegou.


Confesso que me sinto meio ridículo escrevendo esse texto, porque é até um insulto para a memória de alguém que dominava tão bem a linguagem e a escrita ter um texto piegas e atrapalhado em sua homenagem. É também uma felicidade saber que um italiano com tanta bagagem cultural, que conviveu próximo de pessoas como Foucault e Lacan, se dedicou tanto tempo em escrever peça de teatro, séries, livros e crônicas no nosso idioma.


Antes de encerrar, quero lembrar de um dos tantos ensinamentos das linhas e entrelinhas dos seus textos, ensinamentos esses passados com total despretensão, apenas sequestrados por mim, um leitor atento. Ele disse alguma vez que as grandes mudanças na sua vida, incluindo mudanças de países e de idiomas, não foram motivadas pelos estudos, trabalho ou coisa do tipo. Foram motivadas por amor a alguém. Os sensíveis também amam as coisas mais simples.


Como um ateu de origem católica, não sei se ele apelou para a extrema-unção na hora mais precisa. Acredito que não. Em tempos tão obscuros com justificativas tão torpes e antiquadas, como fazer barbáries em nome de Deus, família e pátria, acho que é cabível dizer um “vá com a ciência”. Contardo Calligaris está à altura de tudo o que é mais humano. Incluindo ser o lugar comum que um jovem aspirante a escritor gosta de frequentar.

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1 Comment


felipeteodoro.fl
felipeteodoro.fl
Mar 31, 2021

Era um grande mestre da escrita, assim como você meu amigo!

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