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Todo mundo tem um lugar comum, uma zona de conforto, um lugar para onde voltar quando parece que está tudo confuso lá fora. Aliás, não sei se todo mundo tem, mas se não tem, recomendo ter, é bom ter. Não sei se é o melhor conselho, não sou bom em conselhos, não tenho nem idade para dar conselhos. Certamente muito se fala sobre justamente sair da zona de conforto. Mas a questão aqui é ter essa zona de conforto, não necessariamente estar, pois nunca sabemos quando vamos perdê-la.

Meu primeiro contato com Contardo Calligaris foi ainda no colégio. O conheci apenas pelos seus textos, sem saber quem era o rosto por trás daquilo. O conheci, apesar dele não saber disso. Ele estava em alguns dos tantos textos de coletâneas das aulas de redação preparatórias para o vestibular. Nessa época eu já tinha o meu primeiro blog e, modéstia à parte, eu era um dos melhores alunos de redação da escola, mas levava a matéria na barriga. Foi justamente nessa época que comecei a mudar a minha visão sobre o texto escrito, sobretudo texto analítico, as famosas resenhas. Foi ali que encontrei um dos primeiros lugares onde eu queria chegar na escrita. E vi que, agora sem falsa modéstia, eu não escrevia nada.

No meu primeiro ano de faculdade, já conhecendo um pouco dos textos de Contardo, fui para o FICA, uma catarse universitária que flertava com o cult, onde jovens de humanas iam para a antiga capital de Goiás a fim de se embebedarem e ouvir Rita Lee usando como pretexto o cinema ambiental. Em um raro momento de sobriedade, entrei com vários transeuntes de ressaca em uma palestra abarrotada de gente. Uma das atrações da mesa debatedora era ele, o senhor Calligaris. Confesso que não lembro de nada do teor da palestra, sequer sabia o tema, se era o debate de algum filme que havia sido exibido ou outro tópico intelectual qualquer. Deduzo que era algo que relacionava psicanálise e cinema. Fala a verdade, nada mais biscoito fino da cultura do que um papo desses. Se sou jovem hoje, dez anos atrás então, nem sei o que eu estava fazendo ali. Ainda estava naquela de não fazer ideia se o FICA era para beber com só cinco reais no bolso ou se era para se tornar mais inteligente. Matuto que sou, só olhei de longe e sorri.

A segunda vez que o vi foi dois anos depois, em uma viagem atordoada para São Paulo. Eu estava em um bar/restaurante de frutos do mar muito bonito (neste ponto leia-se: eu não tinha dinheiro para estar ali pois eu ainda era um universitário). Coincidentemente isso aconteceu em uma semana santa, tal qual essa em que escrevo este texto. O vi entrar e se encaminhar sozinho para o balcão. Eu não o reconheci logo de cara. Só uns dez minutos depois me veio um estalo e lembrei de quem se tratava. Pensei em me aproximar e trocar uma ideia, o que na minha cabeça era uma cena ridícula, já que nem dinheiro pra conta eu tinha, quanto mais postura pra uma conversa casual com um psicanalista renomado. Falei com o garçom para ver se me ajudava no approach. O garçom prontamente se animou e foi falar com ele. A resposta não podia ser mais verdadeiramente decepcionante: o suposto Contardo falou pro garçom que eu havia me confundido.


Uma hora depois mais ou menos o homem deixou o bar. No mesmo instante, o garçom veio até mim e me deixou um bilhete escrito à mão. O bilhete falava sobre o texto da coluna dele publicada na Folha naquele mesmo dia. E sua assinatura. Obviamente perdi esse bilhete e hoje ele só existe na minha lembrança e nesse texto aqui.


Segui na minha vida universitária. Me tornei estagiário do Núcleo de Comunicação do TRT. Uma das minhas funções era a de fazer clipping, que consistia em buscar os jornais do dia na portaria e folheá-los em busca de notícias relacionadas à Justiça do Trabalho e ao próprio Tribunal. Função chata, que ninguém em sã consciência iria querer para si. Mas quando se está no inferno, a melhor opção é abraçar o capeta. Tratei logo de achar o lado bom disso. E o lado bom era ter acesso ilimitado aos melhores jornais do Brasil, como Folha, Correio e Valor Econômico. Entre as inúmeras colunas e cadernos de imensa qualidade, estava a coluna de Contardo Calligaris, às quintas, na Ilustrada da Folha, a minha favorita. Foi o contato mais próximo, quase íntimo, me arrisco a dizer, com Calligaris.


Na coluna, ele explorava diversos temas da atualidade, de política à filmes cults, sexo e sexualidade, passando por assuntos quentes da semana, movimentos sociais, protestos ou somente histórias antigas da própria vida e da psicanálise. Isso sem falar, é claro, da vida e da morte. Uma leitura apurada de rara lucidez em tempos tão fanáticos que começavam a desenhar o caos que vivemos hoje. Destaque para a escrita impecável e para a forma como ele abordava conteúdos complexos com elegância, sem perder a clareza para os leigos que o liam, como eu. Foi por causa da coluna que descobri alguns filmes interessantes, procurei alguns livros que nem tinha como eu cogitar antes e visitei alguns mundos muito distantes do meu, como a Itália do pós-guerra, a França dos anos 50 e 60, os Estados Unidos dos anos 70 e 80 e o Brasil dos anos 90 pela ótica de um estrangeiro. Não é demais lembrar que Contardo é italiano, o que torna o prazer da leitura uma experiência ainda mais inusitada, já que o português não é sua língua nativa, sequer seu segundo ou terceiro idioma.


Por causa da coluna, comprei a coletânea “Todos os reis estão nus”, seu livro publicado pela editora Três Estrelas com um apanhado de aproximadamente uma década dos seus textos para a Folha de S. Paulo. Não vou lembrar o recorte de tempo com exatidão.

Com o livro em mãos e devidamente lido (e indicado para quem quisesse ouvir, aliás, fica a dica), tive o meu terceiro e último encontro pessoalmente com Calligaris. Foi em um evento que costumava acontecer em Goiânia chamado Café Filosófico, que ocorreu no Centro Cultura Oscar Niemeyer, em 2015. Como a ocasião do evento permitia, ao final fui tietar. Pedi um autógrafo em italiano no meu exemplar de seu livro – na época eu fazia aula de italiano. Ele gentilmente respondeu que já nem lembrava mais como se falava em italiano, mas que ia tentar lembrar para escrever o meu autógrafo. Depois tiramos uma foto, que postei no Instagram com muito orgulho.


Infelizmente, e como se pode imaginar se tratando de mim, não sei mais onde está o livro que, por tanto adorar, emprestei para algumas pessoas e já não me lembro quem foi a última, que provavelmente também não lembrou de me devolver. Ficou a foto daquele dia e a memória.


Uma coincidência que mostra como a vida é de fato um sopro misturado com um vendaval de ironias sem destino, foi que hoje mais cedo eu estava procurando um texto seu para enviar para um amigo (sempre eu recorrendo ao meu lugar comum de referência). Ao cair na página de sua coluna na Folha, olhei bem para a foto daquele senhor que já passava dos 70 anos de idade. O encarei com certa inveja. Dessa vez não só pela admiração intelectual, mas por pensar no tanto que aquele senhor estava bem, inteirão. Refleti a sorte que eu tinha. “Que bom, esse aí vai escrever até depois dos 100 anos de idade”, eu pensei. Pouquíssimas horas depois soube do seu falecimento. Não sabia que ele lutava contra um câncer. Me senti um péssimo admirador.


Já faz alguns anos que não acompanho semanalmente a sua coluna por falta de acesso constante à Folha de S. Paulo. Por mais que eu gostasse muito, era aquele lugar comum que eu sabia que podia voltar sempre, pra sempre, o que deixa o conforto de poder voltar depois. E o pra sempre chegou.


Confesso que me sinto meio ridículo escrevendo esse texto, porque é até um insulto para a memória de alguém que dominava tão bem a linguagem e a escrita ter um texto piegas e atrapalhado em sua homenagem. É também uma felicidade saber que um italiano com tanta bagagem cultural, que conviveu próximo de pessoas como Foucault e Lacan, se dedicou tanto tempo em escrever peça de teatro, séries, livros e crônicas no nosso idioma.


Antes de encerrar, quero lembrar de um dos tantos ensinamentos das linhas e entrelinhas dos seus textos, ensinamentos esses passados com total despretensão, apenas sequestrados por mim, um leitor atento. Ele disse alguma vez que as grandes mudanças na sua vida, incluindo mudanças de países e de idiomas, não foram motivadas pelos estudos, trabalho ou coisa do tipo. Foram motivadas por amor a alguém. Os sensíveis também amam as coisas mais simples.


Como um ateu de origem católica, não sei se ele apelou para a extrema-unção na hora mais precisa. Acredito que não. Em tempos tão obscuros com justificativas tão torpes e antiquadas, como fazer barbáries em nome de Deus, família e pátria, acho que é cabível dizer um “vá com a ciência”. Contardo Calligaris está à altura de tudo o que é mais humano. Incluindo ser o lugar comum que um jovem aspirante a escritor gosta de frequentar.

  • Feb 23, 2021
  • 17 min read

Ele não gostava de acordar cedo.


O som do despertador lhe doía mais do que a obrigação de comer fígado pelo menos uma vez por semana, obrigação essa imposta pela sua mãe. Ou podemos dizer que acordar cedo lhe doía mais do que qualquer outra obrigação? Era certo que ele não gostava de obrigações. Mas acordar cedo era de longe a pior, talvez pelo peso de ser logo a primeira do dia dentre as várias outras que se sucederiam, como tomar banho gelado e ir para a escola, local que reunia as outras obrigações das mais variadas e chatas. Não tinha escapatória. Aliás, tinha uma escapatória oficial da escola: se não quisesse ir para a escola a saída era ir para a oficina de seu pai para ajudá-lo no ofício, porque era assim, se não quisesse estudar, tinha que trabalhar. Contudo, não tinha para onde correr da obrigação de acordar cedo.


Já que ele não tinha escapatória, tratou logo de achar tempo para obrigação se tornar diversão. Se por um lado qualquer alternativa não tiraria das costas dele a responsabilidade de madrugar das costas dele, por outro o ótimo era inimigo do bom. Logo pensou, nada mal seria acordar cedo para aproveitar a vida. Assim, acordava com as galinhas, tomava o café com os pais e ia embora para onde os pés mandassem como os cachorros de rua.


Eram outros tempos. A escola não se preocupava em comunicar a ausência dos alunos aos pais, até porque era comum os estudantes serem forçados a abrirem mão da merenda para garantirem a comida para toda família. Nisso, ele aproveitou os melhores dias da sua vida sem ser percebido e importunado, pulando catracas de outras linhas de ônibus, indo em outros bairros, fazendo amizades com os malandros de outras praças, paquerando mulheres comprometidas em outros parques, praticando jogatinas em outras feiras, pendurando contas em outros bares, até mesmo transpondo muros de clubes nunca antes frequentados por qualquer conhecido seu. Dias esses que foram eternos enquanto duraram até quando o relógio de Dona Aninha, a secretária da escola, parou marcando pontualmente sete horas, cinquenta e três minutos e vinte e oito segundos.


- Tarde, cumpadi, como vai Comadre Zélia?


- Vai bem, cumadi.


- E o menino, trabalhando muito?


- Nada, o menino num quer saber de trabaiá, mais melhor assim, vai ter o estudo que eu e Zélia num tivemo.


- Uai, o menino mudou de escola?


- Não, uai, por quê?


- Que estranho, faz tempo que não vejo o menino na escola, pensei que ele tava só trabalhando aqui com o compadre.


A casa dele caiu naquele mesmo instante. E quando voltou para casa verdadeira, não a metafórica, já de noitinha, ele levou a última e mais memorável surra de sua vida. Quando pensou em protestar, o olhar de cólera do pai calou qualquer sibilo de súplica e ele apenas aguentou as cintadas. Quando finalmente disse alguma coisa, não era para parar, muito menos para continuar obviamente, já que a carne viva doía como nunca. Era apenas respeito ao pai. No último estalar do cinto, ele já não era mais moleque e já no dia seguinte trabalharia com o pai no que seria seu ofício até o fim do seu tempo. Um adendo importante neste ponto da história: ele não era mais moleque, é verdade, mas maior que as molecagens de menino é a malandragem de homem feito.


É bem verdade que o pai dele era analfabeto, rústico e dotado de uma sensibilidade de uma porta. Mas burro, o pai dele não era. Se não sabia ler as letras, o pai dele sabia ler muito bem os números, aliás, não só isso, amava os números, sobretudo os números em notas de dinheiro. Também entendia bem do funcionamento das tecnologias mecânicas. Isso fez com que conseguisse empregos como mestre de obras, torneiro, mecânico e, por fim, relojoeiro, profissão que aprendeu com um ex-colega da construção civil e logo dominou bem, o que foi surpreendente para alguém tão obtuso nas relações humanas. Ele tinha plena consciência que o pai não era burro, então sua malandragem devia ser aplicada na medida certa. Se conseguisse bons números em notas de dinheiro, a linguagem universal que seu pai entendia, estaria tudo certo.


Ele aprendeu com o pai o necessário para que conseguisse enganar no ofício. O pai especializou-se em relógios analógicos, aqueles de ponteiro. Consertava de tudo, não tinha tempo ruim. De Rolex à TAG Heuer, de Omega estilo 007 aos xing lings mais vagabundos, passando por relógios comprados em lojas de departamento que as donas de casa gostavam tanto quanto seus relógios de parede que serviam para marcar o tempo de forno de seus bolos de fubá e cenoura e seus biscoitos de queijo e pães de queijo. Entretanto, na visão dele, o pai não se atentava a dois fatores do mercado que poderiam ser o tiro no pé do pequeno negócio da família.


O primeiro era que os relógios digitais tomavam conta da indústria, sobretudo os rádios-relógios e os relógios de pulso com displays modernos, alguns até fazendo cálculos – o pai era conservador e dizia que essas coisas eram coisas de burgueses que nunca levariam suas coisas para consertar, apenas jogariam fora ao enguiçar e comprariam outra porcaria do gênero. O segundo grande erro era que seu pai era impecável no que fazia, com consertos tão bons que deixam os relógios melhores do que vindos de fábrica, fazendo que a maior parte da clientela fiel se tornasse fiéis transeuntes que passavam para perguntar como iam as coisas e perguntar da comadre. Parar para trazer novos consertos, nada. Depois passa lá em casa com a comadre pra tomar um cafezinho, diziam. Entre estes fiéis clientes transeuntes estava o Seu Aristóteles do bar do mercado, que passava pelo menos uma vez por semana pontualmente em qualquer dia a qualquer horário para prosear sobre os impostos abusivos, sobre a criminalidade crescente, sobre o resultado do futebol e sobre quem tinha morrido, assuntos esses que duravam uma hora ou mais e que Seu Aristóteles não sabia que o pai dele não tinha o menor interesse, mas era tão bom em concordar e dizer é mesmo, que deixava Seu Aristóteles satisfeito.


Seu Aristóteles gostava tanto do pai dele que ele ganhava alguns gorós de graça sem que o pai soubesse, já que o pai não bebia e a única coisa que o Seu Aristóteles sabia fazer tão bem quanto conversar fiado era fazer fiado para os seus. Por tabela, ele, e não o pai, acabava sendo privilegiado. Seu Aristóteles também deixava seu Rolex de estimação, que havia ganhado em uma lendária partida de baralho, para uma revisão anual, algo totalmente desnecessário, já que desde a primeira vez que o pai dele encostou nas engrenagens do Rolex, seus ponteiros não atrasaram sequer um segundo. Por educação, o pai dele olhava o relógio e nada constatava. Passava um paninho que deixava o relógio de grife duvidosa mais brilhante e devolvia praticamente da mesma forma com que havia recebido. Se recusava a receber qualquer honorário por isso, mas Seu Aristóteles insistia até ser derrotado pela recusa.


Ele via seu pai com um misto de admiração, dó e raiva. Admiração porque nunca seria tão bom em trabalhar quanto o pai. Dó porque via o seu pai parado no tempo na evolução das tecnologias, enquanto os charlatões das lojas vizinhas faziam mais dinheiro fácil – de certa forma, isso rendia um trocado a mais na oficina do pai porque algumas vezes ele que tinha que consertar as cagadas dos concorrentes. E raiva porque se o pai era bom em trabalhar, ele era melhor ainda em vadiar, o que ocasionava um conflito de interesses que prejudicava os planos dele de vadiagem.


É importante observar que trabalhar com o pai lhe rendia certo ensinamento e algum trocado para ir em festas e comprar umas roupas da moda para chamar a atenção das meninas. Mas sem economias para comprar um carro para dar uns beijos mais quentes e privados ou pelo menos uma mobilete para buscar as pretendidas em casa e quem sabe levá-las para um motel ou um parque deserto que seja, ele ficava para trás quando o assunto era a barganha final no jogo da sedução, já que no papo ele se garantia como ninguém. Mesmo saindo na frente dos concorrentes por seu charme de malandro e por saber falar o que elas queriam ouvir, ir para a próxima fase sem um meio de transporte próprio se tornava complicado. Algumas vezes conseguia pegar o carro emprestado de um amigo, sempre sob protesto após minutos de insistências com ofertas de favores que nunca seria capaz de cumprir. Outras vezes, quando seus amigos já não caiam mais no golpe do favor futuro, tentava a sorte falando para a donzela conquistada "vamos chamar um táxi para ir para um lugar mais reservado?" A maioria ria pensando se tratar de uma piada, mas quando descobriam que era verdade, se recusavam, não por falta de vontade, mas por medo de terem que arcar com o valor da corrida sozinhas, o que era de fato uma grande possibilidade.


Cansado de ficar no zero a zero, ele precisava criar alguma forma de aumentar a renda. Mas como? Pensou em pedir um emprego para Seu Aristóteles, mas nesta altura do campeonato Seu Aristóteles já sentia o cheiro do prejuízo de ter um bebum comandando o seu balcão. Outras pessoas nunca lhe dariam emprego sem experiência. E para falar a verdade mesmo, ele não queria procurar outro lugar para trabalhar. Foi então que lhe ocorreu uma ideia ousada.


Pegou alguns relógios do mostruário da oficina de clientes que os deixaram para o conserto e nunca mais retornaram para buscar e fez experimentos. Entre várias tentativas frustradas, depois de três longos meses de invenções sem fundamentos e mais um mês de espera, ele viu que se colocasse uma minúscula mola de pouquíssimos milímetros por debaixo das engrenagens, o relógio funcionaria perfeitamente sem grandes problemas aparentes, mas que, depois de mais ou menos trinta e três dias, atrasaria o relógio em cinco minutos, algo que é aceitável caso você não seja um maquinista de um trem suíço. O pulo do gato estaria quando alguém resolvesse ajustar o horário, o que faria com que a pequena mola entrasse em atrito com as engrenagens e desmantelasse o relógio por dentro a ponto de pará-lo. O novo conserto não era nada complexo e a pequena mola seria descartada com um excedente, caso o pai a encontrasse – isso também não causaria estranheza para o pai, era comum os relógios virem de fábrica com peças demais, segundo o experiente relojoeiro. Dessa forma, implantando a pequenina mola parasita, os clientes poderiam voltar mais vezes.


No início teve muito medo de ser pego na surdina. Só de lembrar da última surra que levou do pai a pele latejava. Também ficou com medo dos clientes não voltarem. Contudo, depois de vinte anos de trabalho no mercado, a fama de seu pai ganhou praticamente todos os bairros da cidade, tornando de grande renome a pequena oficina, deixando a credibilidade consideravelmente próxima ao inabalável. Os clientes passaram a voltar mais e, pasmem, indicar outros clientes! Até mesmo Seu Aristóteles, que ganhou outro relógio na jogatina, esse sem grande valor aparente até para os leigos, teve seu relógio consertado mais de uma vez para própria alegria e satisfação de ver o pai dele colocando a mão na massa. De fato, era bonito ver a destreza e concentração do pai manejando pequenas peças com tanta delicadeza, palavra essa que não combinava em nada com o pai em qualquer outro contexto.


Foi batata. A renda do mês praticamente duplicou. Ele nem precisava colocar pequenas molas em todos os relógios, variava um com mola, dois sem mola. O pai, por sua vez, quando colocava a mão na massa, deixava o serviço impecável. A nova clientela trazia outros relógios encostados para dar um grau, que também saiam sem as artimanhas dele quando passavam diretamente pelas mãos do pai. Porém, não dava para abrir mão cem por cento das molas, priorizando sempre os relógios que pareciam ter sido adquiridos recentemente. O pai dizia:


- Não se fazem mais relógios como antigamente.


E até mesmo complementava depois de mais meia dúzia de casos:


- Desde que inventaram esses relógios digitais os fabricantes de relógios se tornaram mais burros. E ainda num dá pá confiar em nada que é feito sem que qualquer pessoa possa fazer, mesmo um desletrado como eu.


Por um tempo o dinheiro que entrou foi o suficiente para aumentar o salário, juntar a grana e comprar um Escort XR3 de segunda mão, sua nave de aventuras, aventuras essas que se os bancos contassem as histórias que presenciou em seu estofado, algumas páginas de texto não seriam o suficiente para registrar.


Foi assim, entre uma pequena mola e outra, que ele conseguiu enganar o pai, os clientes do pai e até mesmo a si mesmo por alguns anos, só não conseguiu enganar o tempo.


Mesmo que alguns relógios com molas excedentes teimassem em dizer o contrário, o tempo, esse cruel inquisidor da existência, teimava em não parar e seguiu seu curso natural em passar em uma velocidade avassaladora e em contagem sempre regressiva.


O tempo lhe trouxe presentes como a maturidade juntamente com sua esposa.


Na época não passava de um encontro casual para ele, no banco de trás do Escort. Para ela também, ela já sabia da fama dele de malandro, não ia querer se casar com um malandro por livre e espontânea vontade sem motivos aparentes, tinha até um namorico com um jovem advogado da vizinhança, jovem direito e promissor. Como se pode imaginar, ela engravidou logo na primeira vez. Ele e ela não eram apaixonados um pelo outro, muito menos se amavam, mas a pegadinha do senhor do destino fez com que ambos se afeiçoassem um pelo outro e o que para muitos jovens malandros como ele poderia ser uma perda de tempo na vida ou um motivo de dar um perdido, ter um filho com ela foi, na verdade, a continuação natural do tempo passado até ali. Ele e ela aprenderam a se amar com o passar dos dias, semanas, meses e isso durou até o fim dos anos de ambos. Não um amor que transborda, mas um amor suficiente para se respeitarem e viverem com propósito em comum de dar continuidade às suas existências com o ser concebido no Escort.


O tempo também sabe ser implacável. Na hora marcada do destino, o último grão de areia da ampulheta da existência levou embora seu pai e sua mãe com a diferença de quarenta e sete dias, deixando para ele de herança uma casa ainda sem escritura e o ponto da pequena oficina de relógios do mercado.


Com um filho pequeno para sustentar, o apoio do amor suficiente de sua mulher e sem saber fazer muitas outras coisas da vida, ele decidiu seguir tocando o negócio do seu pai. Chegara até a cogitar aproveitar o ponto para vender alguma outra coisa, talvez um boteco que com certeza atrairia muito mais clientela, mas não queria concorrer com o bondoso Seu Aristóteles. Ficou no ramo do conserto de relógios e contou com a visita semanal de Seu Aristóteles, seu cliente fiel que não fazia ele se arrepender da decisão tomada. Aproveitou para aprender a consertar também relógios digitais, já que não contava mais com a resistência do pai, contudo o tempo também havia passado para esses, que já não eram grande novidade e nem tão úteis assim.


Em um primeiro momento teve que encarar os olhares e palavras de pêsames da coleção de clientes do seu pai acumulado ao longo de décadas, a coisa mais próxima de amizade que seu pouco amistoso pai chegou a ter. Depois, sentiu uma certa desconfiança vindo por parte deles. Sentiu-se obrigado a defender o legado de seu pai, mas precisava também reafirmar o seu lugar, até porque sabia que os clientes estavam cobertos de razão em desconfiar da sua capacidade e da sua honestidade. Fora isso, nessa época os telefones celulares já estavam estabelecidos e cada vez menos pessoas precisavam de relógios para marcar as horas.


Foi então que teve sua segunda grande sacada da vida de homem, a primeira desde as diminutas molas nas engrenagens dos relógios. E ela vinha da sua lábia dos tempos de moleque, aperfeiçoada nos tempos de solteiro implacável. Com sua criatividade para malandragens, confeccionou, a próprio punho, uma plaquinha que viria se tornar uma jogada de marketing melhor que a de publicitários engomados de meia tigela. Na plaquinha se lia:


O meu preço não é medido pelo tempo que demoro para fazer o meu serviço e sim pelo tempo que demorei para chegar até aqui.

Sucesso. Para uns ganhava a simpatia por acharem sua placa de um humor sagaz. Para outros era um gênio do business. E ainda tinham aqueles que o consideravam um filósofo de rua nunca antes descoberto, incompreendido pela sociedade capitalista e patriarcal. A verdade mesmo é que muito mais do que ganhar a atenção, a curiosidade e, por vezes, o respeito da clientela, a grande licença poética de sua placa era poder cobrar pelo serviço de acordo com a cara do cliente. Uma sobrevida bem-vinda para ele na era digital.


E ainda tinha a boa e velha tática da mola trapaceira. Essa, nesses tempos, ele só colocava por esporte, também de acordo com a cara do cliente, mas cada vez mais a usava menos. A exceção era para Seu Aristóteles, a quem passou a colocar sempre uma mola nas engrenagens para que o velho sempre voltasse a visitá-lo. Como o tempo também não parou de passar para Seu Aristóteles, ele agora tinha uma locomoção lenta de idoso, ocasionada pelo sobrepeso de anos ininterruptos de torresmo com cachaça, habito que resultou também nas duas pontes de safena. Ele não queria perder a companhia dessa simpática lenda viva do mercado, o último dos moicanos, a resistência de uma era romântica.


Avançamos mais um pouco na linha do tempo. Os telefones celulares agora já eram smartphones e o mercado já tinha outra cara de clientela. Poucos clientes tradicionais precisam, ou não conseguiam, se deslocar até lá para resolver suas questões cotidianas. Ou já nem existiam. O lugar agora era visitado por curiosos e pelos descendentes das gerações de outrora, quase como turistas visitando um museu para entender como que é a lógica de um mercado municipal no tempo dos seus pais e avós. Também iam alguns universitários alternativos, que achavam certa graça daquela plaquinha da antiga loja de consertos de relógios quando iam matar aula e tempo no bar de Seu Aristóteles. Vez ou outra, alguém parava e tirava uma foto para fazer um post, mas nem mesmo a plaquinha era o suficiente para convencer as pessoas voltarem a usar relógios de pulso. Os que ostentavam um relógio caro faziam isso mais pela joia que carregavam do que pela necessidade de olhar as horas, então, pouco importava se a hora estava certa ou se os ponteiros estavam parados. Até um relógio parado está certo ao menos duas vezes por dia, eles diziam.


Até que um dia, o inusitado aconteceu. Ironicamente, o celular dele não tocou na hora certa. Ou se tocou, ele não viu. Na dúvida, fez como seu pai e culpou os tempos modernos, afinal, não dá para se confiar nessas tecnologias que não é qualquer uma que posa reparar. Na pressa de sair correndo, recuperar o tempo perdido e abrir a oficina, se atrasou um pouco mais porque teve que voltar para buscar as chaves. Para ser mais preciso, se atrasou seis minutos e catorze segundos além dos quarenta e dois minutos e trinta e cinco segundos que já estava atrasado por acordar fora do horário. Parece ser muito preciosismo relatar esses números, mas a verdade é que só essa precisão foi capaz de congelar as horas para que veio a seguir: um quase atropelamento na rua do mercado.


Se ele se atrasasse um segundo a mais, seja para amarrar o sapato ou para escovar os dentes com mais asseio, ele não teria se assustado em meio a sua pressa de chegar logo, pois nem perceberia que fora quase atropelado. A emoção do susto ficaria restrita totalmente ao motorista que teria freado, evitando o acidente. Se ele estivesse atrasado um segundo menos seria acertado em cheio por um ônibus abarrotado de gente, também atrasado como ele, o que atrasaria o dia de outros tantos trabalhadores com o desastre do ocorrido. Me ocorre agora a reflexão, será que ele chegou mesmo na hora que era para ser?


O que importa é que com a precisão do tempo, e não com sua relatividade, ele não só não foi atropelado como viveu o susto que fez com que tudo o que vivera até ali passasse em sua retina em uma velocidade alucinante. Terminou o percurso até a oficina a passos lentos, refletindo suas atitudes, sentindo a adrenalina do susto nas veias e trazendo um inédito sentimento de culpa por todas as trapaças feitas ao longo de existência. Ao abrir a oficina com o atraso de uma hora, onze minutos e sete segundos, já estava decidido deixar de ser um impostor.


Uma gota de suor surgia por segundo em cada poro mais extremo do seu corpo só de pensar em atender o próximo cliente. Meia hora, uma hora, uma hora e meia e ninguém veio. Quando pensou que suas glândulas sudoríparas iriam se acalmar, ele viu lá de longe os passos vagarosos de três apoios vindo na direção da oficina. Era Seu Aristóteles e sua bengala. Depois de dois minutos e dezessete segundos, Seu Aristóteles terminou o seu trajeto. Sua mão trêmula sustentava com dificuldade um relógio e sua boca sustentava uma dentadura gasta em um sorriso de resina.


- Bom dia, seu menino! Vim aqui mais cedo e vossa oficina ainda não estava aberta. Pensei que poderia ter acontecido.


- Dia, Seu Aristóteles, eu me atrasei porque...


- Que ironia do destino, um relojoeiro atrasado e eu aqui fazendo hora extra, mas não tem problema, eu só vim trazer meu relógio para você dar uma regulada, aquele velho problema de atrasar...


- Seu Aristóteles, tem certeza que vai contratar o meu serviço? Eu sou uma fraude, desde o tempo do meu pai eu só coloco uma mola desse tipo aqui no meio das engrenagens do seu Rolex só pro senhor que voltar aqui. E eu fazia com outras pessoas e...


- O negócio da mola? Eu já sei, menino, essa é velha.


- O senhor sabia?


- Desde os tempos do seu pai! Você não sabe o tamanho da minha satisfação quando o meu relógio estragou pela primeira vez depois de uma revisão dessa oficina. Seu pai era intragável, ele não fazia serviço meia-boca, coisa rara já naquela época. Eu o admirava muito, bom homem o seu pai! Era um privilégio ver ele fazendo o serviço com tanto capricho.


- Mas como o senhor sabia?


- Olha, isso foi uma coisa que seu pai me contou pouco antes de bater as botas, com todo respeito. Ele começou a ver que os clientes voltavam e o problema era sempre o mesmo, coisa que ele não via antes. Era comum, segundo ele, os relógios terem peças inúteis, mas sempre a mesma peça em qualquer tipo de relógio de qualquer marca? Era coisa estranha. Seu pai podia não saber ler, mas o bicho sabia pensar. Não foi difícil pra ele descobrir que era você.


- Meu Deus! Meu pai sabia que eu...


- Não se preocupe, menino. Pais e mães sabem de tudo, só fazem vista grossa. Vai me dizer que não era melhor ele ter um moleque espoleta como você por perto do que arrumando encrenca em outra vizinhança? E ainda um moleque que fazia dinheiro! Pelo menos assim ele ficava de olho em você e você fazia algo produtivo. Tenho certeza que ele era contra, mas achou engenhoso e preferiu não falar nada, sabe como é. Vamos lá, conserte meu relógio!


- Seu Aristóteles, com todo respeito que eu tenho pelo senhor, você mesmo tá admitindo que eu sou um impostor e quer que eu continue ajeitando seu relógio?


- Ora pois! É justamente por isso que estou te contratando, menino! Assim eu gasto meu dinheiro que eu gastaria inutilmente com algo que realmente entrega o que promete, me proporcionando uma sensação de catarse sucedida de um vazio posterior que me deixará triste e com mais vontade de comprar mor... De comprar... De comprar qualquer porcaria logo em seguida! Gastando com você, um menino que vi crescer, eu sou enganado, passo raiva quando vejo que o relógio atrasou quando não deveria atrasar, o que me renderá assuntos, reclamações vazias, com as pessoas que ainda vão no meu boteco. E isso me trará um alívio por ser ouvido, mesmo que falsamente. Eu sou velho, menino, ninguém mais quer parar para ouvir um velho, nem outros velhos suportam. Olha o bem que você me traz! Imagine só, as horas e horas de bar que isso pode me render. E isso me fará procurar outro relojoeiro? Pelo contrário! É você mesmo que procuro, dentro do meu infinito ressentimento que finjo ter, para resolver o meu problema que não foi solucionado da primeira vez. Meu caro, a vida é uma grande mentira e eu prefiro pagar para ver a ilusão acontecer comigo, sendo eu parte do palco no pouco tempo que me resta. Mesmo que como coadjuvante ou até mesmo um mero figurante, prefiro ser palco do que ser uma plateia acometida por uma verdade efêmera e insossa. Fora isso, depois da raiva de sentir raiva pelo relógio atrasar, gosto de pensar que esse atraso são minutos de acréscimo valiosos que a vida está me dando. Ou seria você mesmo que estaria me dando?


Desconcertado e sem fôlego com tantas informações em tão pouca fração de tempo, ele aceita de bom grado toda a sabedoria de Seu Aristóteles. Aceitou também por cansaço e por não entender tudo o que o velho dizia. Sua camisa a essa altura estava ensopada. Tentou se recompor e sentiu sua adrenalina abaixar. Respirou, inspirou e com a calma de quem percebe que atingiu outro nível de existência, ele resolveu fazer uma última confissão.


- Você sabia que eu cobro o dobro do preço pro senhor? Aposto que dessa o senhor não sabia...


- Estás falando dessa sua plaquinha? Eu sou macaco velho por aqui, meu filho, já vi de tudo. Eu lido com a malandragem desde muito antes do seu pai abrir essa oficina bem aqui. Pra mim era uma honra ver o filho do seu pai colocando as mãos no meu valiosíssimo relógio e ainda me cobrar o dobro do preço. Veja bem, eu sou velho, menino. Todo mundo tenta me passar a perna o tempo todo, mas pouca gente com tanto respeito de me colocar na prateleira da mais alta sociedade! Me faz me lembrar dos tempos que eu andava por aí como barão de verdade, cordão de ouro, dente de ouro, essas coisas. Hoje só tenho esse relógio. Nem dente de dente eu tenho mais, quanto mais de ouro! Até hoje me lembro do dia que eu ganhei esse Rolex no buraco.


- Seu Aristóteles... Com todo respeito, seu relógio é paraguaio, meu pai me contou. É uma boa réplica! Mas é verdadeiro quanto uma nota de três.


- E daí? Não é porque é ou não é uma réplica de marca que não marca as horas com um atraso tão oportuno. Continua sendo um relógio cumprindo a sua função. E ainda tem história! Vamos lá, menino. Pare de querer achar que sabe de tudo, não é porque você é relojoeiro que você é senhor do tempo e dono da verdade. Conserte meu relógio que eu volto semana que vem se ainda me restar tempo por aqui.

  • Jan 2, 2021
  • 3 min read

Os chinelos estavam comigo desde 2008. São até um pouco menores que meu pé, haja vista que em 2008 eu ainda estava em fase de crescimento no auge dos meus 15 anos, que de auge mesmo não teve lá muitas coisas, excetuando o dia que fiquei mais de 20 minutos sem piscar, algo que chocou todo o 1° B, mas talvez isso tenha sido aos 16 no 2° B e isso pouco importa agora. Ganhei-os como lembrança em um evento tradicional de encontro de jovens do colégio em que eu estudava - para surpresa do leitor, o nome do evento era Encontro de Jovens. Os chinelos eram de cor azul e tinham uma qualidade inferior de conforto em relação aos chinelos da mesma marca vendidos no supermercado ou lojas de departamento, talvez, acredito eu, por serem exemplares comprados no atacado para servirem de brindes banais sem muito valor agregado. São daquela marca com o gentílico no feminino e plural de quem nasce naquele estado dos Estados Unidos que é um conjunto de ilhas no pacífico que você já deve estar imaginando qual é. Mesmo sendo brindes usei-os bastante assim que ganhei-os. Depois de um ano ou menos, comprei outro par de chinelos, já que os ganhados estavam "velhos" e foram rebaixados para o status de chinelos- reservas-quebra-galho-para-momentos-de-grande-necessidade. O novo par arrebentou em pouco tempo. Assim como todos os outros que vieram em seguida por vários meses, alguns durando mais, outros menos. Em algum momento, provavelmente quando me mudei de casa, os chinelos azuis acabaram sendo esquecidos no fundo do armário por um bom tempo, o que fez com que eu ficasse descalço quando os chinelos titulares se rompia - e como teimavam em se romper! Um belo dia achei-os novamente em algum momento de faxina ou desespero. Estavam com a borracha mais dura do que nunca, até mesmo do que a borracha da marca concorrente com nome de praia da zona sul do Rio de Janeiro. Considerei jogá-los fora, mas como estava sem chinelos novos, usei-os mesmo parecendo dois tacos de madeira no pé. O tempo e o uso foram amaciando a borracha novamente, mas não o suficiente para que eu abrisse mão de comprar chinelos novos assim que sobrasse algum trocado. Os chinelos azuis do Encontro de Jovens mais uma vez voltavam ao seu ostracismo de chinelos- reservas-quebra-galho-para-momentos-de-grande-necessidade tal qual Ana Furtado nos programas matinais da Globo. Porém, dessa vez não ficariam mais esquecidos no fundo do armário. Sempre que os novos arrebentavam, eu recorria aos velhos chinelos azuis. Depois de tantos anos sem se queixarem de cansaço e em nenhum momento ousarem a recorrer à velha tática de soltar a tira para ganharem aposentadoria compulsória como os seus similares mais novos e de estampas descoladas teimavam em fazer, os chinelos azuis me chamaram a atenção. Será que algum outro par de chinelos durara tanto tempo quanto esse? Como reconhecimento dos serviços prestados até ali, os promovi para chinelos da mochila do futebol para usá-los quando tirasse as chuteiras após as peladas de terça em um momento de prazer barato que só Brás Cubas experimentara com tanto deleite até então, um status que todo chinelo Nutella de hoje em dia quer ter. Veio 2020 e a pandemia. As peladas forçadamente deixaram de existir na minha vida. Contudo, os chinelos azuis não poderiam (e nem queriam!) ficar parados. Durante o início da pandemia usei-os como chinelos-titulares-de-usar-em-casa, o mais nobre posto que qualquer chinelo sério que se preze gostaria de ter. Mas isso era muito pouco para um velho pisante de guerra. Comprei chinelos novos e promovi os chinelos do Encontro de Jovens para chinelos-de-usar-na-rua-durante-a-pandemia, o que o tornou meu companheiro nas idas periódicas ao supermercado em um mundo apocalíptico, descansando depois da batalha no capacho da porta de entrada do apartamento até a próxima missão chegar. Hoje, 2 de janeiro de 2021, depois de 12 anos e alguns meses, os chinelos azuis não resistiram a força irreversível do tempo. A tira do pé direito, o mais usado por um destro como eu, rompeu-se naquele ponto de ligação em que se separa o dedão dos outros dedos. Um fim honrado para um par de chinelos velhos que sucumbiu ao tempo, mas resistiu bravamente até mesmo ao ano de 2020. Foram sepultados menos de 5 minutos depois (com pompas de heróis, diga-se de passagem, no lixo reciclável da cozinha), pois, honrados que foram até o final, não me deixaram na mão no meio da rua, fazendo a gentileza de encerrarem suas atividades ainda no subsolo 2 do prédio.

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